Testemunho - A Palavra a Paulo Ambrósio
"O Luís era uma daquelas pessoas já raras, porque digna, guiado por princípios e valores, exigente consigo próprio, tímido e muito metido com ele (era difícil arrancar-lhe um sorriso). Aos 51 anos, "solteirão", ainda contratado - o professorado é a única profissão em Portugal onde isto ainda acontece! - veio até nós, no decurso da luta pela Profissionalização, contexto onde convivi com ele directamente durante cerca de três anos. Portador de Habilitação Própria, foi eleito em Lisboa, em Plenário para a Comissão de Contratados, em 2004. Participou activamente em todos os protestos e acções reivindicativas da nossa Frente de Trabalho do SPGL, que levaram à conquista do Despacho nº 6365/2205 (profissionalização em serviço em ESE's e Faculdades). Era conhecido entre nós pelo ”freelancer" (alusão à sua segunda ocupação de jornalista eventual). Dotado de forte sensibilidade em relação ao mundo da informação e da comunicação social, propôs e pedia frequentemente, nas nossas reuniões, que os sindicatos encarassem esta frente (relações públicas) com outros olhos, mais eficazmente. A partir de 2006, não se recandidatou mais à nossa comissão de contratados. Encontrei-o mais tarde nas mega-manifestações de professores: estava na Escola EB 2,3 Ruy Belo, e achei-o disposto a não entregar os Objectivos Individuais, um verdadeiro problema de consciência moral, para ele. Depois disso, mais uma ou duas vezes, espaçadamente. Soube que tinha sido colocado na EB2,3 de Fitares, mas pouco mais. No passado dia 11 de Fevereiro, revi-o pela última vez, em Oeiras, já deitado no caixão na capela mortuária. Conversei longamente com a mãe, a irmã, a empregada doméstica. Vêm-me à memória as palavras do pai, militar aposentado: "o Luís era bom moço, quis ser bom até ao fim, só que não aguentou o inferno das escolas de hoje... Vocês têm que fazer qualquer coisa!" O Luís nos, últimos tempos, já tinha tomado friamente a decisão, inabalável. Por isso, não creio que nesse período, tenha pedido ajuda a ninguém. Segundo me disseram familiares, no velório, pela consulta do histórico do seu PC, ele, um mês antes e se lançar da ponte, consultava sites sobre suicídio, na internet. Escolheu o dia da sua morte coincidindo com a data de aniversário do pai, com o qual, aliás, se dava bem. O ambiente no velório foi impressionante, pela dignidade, revolta interior e tristeza da cerimónia, com alguns professores presentes, num silêncio de cortar à faca, só rasgado por frases em surdina, de justo ódio, visando os políticos responsáveis pela situação a que nos últimos anos chegou o Ensino Público. Foi, sem dúvida, dos velórios mais tocantes em que estive até hoje, mesmo estando já habituado a duras perdas, e tendo estado na semana anterior, noutro, de um familiar directo. Quando escrevi no livro de condolências o que me ia no espírito, tive dificuldade em o fazer, a cortina de lágrimas teimava em desfocar-me as letras. Pessoalmente, decidi manter silêncio durante um mês, por respeito ao pesado luto da família, só o quebrando depois da irmã dele (nossa colega, também) o ter feito, decorridos cerca de trinta dias, com a divulgação da notícia à comunicação social, para assim tentar evitar que outros casos se repitam, colocar toda a verdadeira dimensão das depressões e suicídios profissionais à luz do dia, rasgar o manto hipócrita dos silêncios assassinos e abalar as consciências de toda a sociedade. Paulo Ambrósio - membro da Comissão de Professores Contratados e da Frente de Professores e Educadores Desempregados do SPGL desde 1999."
Fonte:PROmova
Daqui.
A minha homenagem ao Luís, colega também do mesmo grupo disciplinar.
ResponderEliminarQue a vida do Luís possa ser para nós exemplo e nos ajude a pensar um pouco mais e a fazermos o que tem que ser feito. É cruel que se use a "fragilidade psicológica" do Luís para justificar a sua decisão. Seria o Luís realmente frágil ou estaria cansado de lutar por aquilo em que acreditava sem que isso implicasse resultados?
"O Luís era uma daquelas pessoas já raras, porque digna, guiado por princípios e valores, exigente consigo próprio"
Não há legitimidade para que pessoas como o Luís, dignas, guiadas por princípios e valores, exigentes consigo próprias se sintam cansadas, gastas e exaustas?!... Por que oferecemos tanta resistência a olharmos para nós próprios e fazermos auto-crítica e aceitarmos as críticas construtivas, se isso nos pode fazer mais felizes a nós e aos que nos rodeiam e é um excelente contributo para que a nossa sociedade possa ser melhor, mais justa e mais fraterna?
Pode ser duro termos que nos olharmos "ao espelho" em certas alturas mas vale a pena!
Obrigada ao Paulo Ambrósio por este belo texto!
Cristina, repesquei este comentário que já deixei no Prof..
ResponderEliminar"Testemunho importante que deve ser ampliado.
Por acaso o Luís era Professor... mas o problema está a montante. Antes de definirmos o Luís profissionalmente não devemos perder de vista que ele era um ser humano único, específico, singular, irrepetível. A falta de respeito, a má-educação, a violência física e psicológica continuadas, a que parece ter sido sujeito, são para mim intoleráveis fora ou dentro de uma Escola. Especialmente dentro de uma escola. Eu acredito na educação pelo exemplo.
Uma escola que nada faz, que não actua, que esconde a cabeça na areia, que dá este exemplo de laxismo aos mais novos, este exemplo do vale tudo até arrancar olhos, que permite esta violação dos direitos humanos de forma continuada, é uma escola profundamente doente."
Acrescento que espero que o seu gesto não tenha sido em vão.
E desejo-lhe Paz.
Beijinho, Cristina... arre que vivemos tempos complicados...