sábado, 14 de agosto de 2010

O País Indecente


Monsanto - A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal - Portugal
Fotografia de Anabela Matias de Magalhães

O País Indecente

A desertificação e o envelhecimento, que tomaram conta do interior do nosso país, são bastante perceptíveis para quem nele faz pequenas incursões de fim-de-semana e se aventura por um Portugal rural, mais do que pacato, a que até pode achar alguma piada nestas pequenas investidas pelo sossego das terras, pela calmaria sentida, pela sensação de tempo que rende até dizer chega, pelo café tomado na venda lá do sítio, pelas conversas improváveis que se mantêm aqui e ali.
Mas estas primeiras impressões são rápida e absolutamente cilindradas durante uma descida pelo interior, que se faz com mais tempo para o desfrute das terras e das suas gentes, chegando-se facilmente à percepção de que a coisa por aqui está preta, que a coisa está perfeitamente perturbadora e arrasadora para qualquer alma cristã... ou para uma alma de qualquer outro tipo.
O país indecente inclui, bem no seu seio, terras de uma beleza ímpar, que se mantêm de pé, a custo, quais árvores em cumieiras ventosas, com a dignidade possível neste país indecente, alcançada através da sabedoria que só a passagem do tempo permite, tempo feito de histórias de guerra e de sangue e de sacrifícios vários, de histórias que ainda hoje resistem e que incluem nomes de povos tão diversos, tão afastados ou tão próximos de nós, como os Lusitanos, os Romanos, os Visigodos, os Árabes e os Castelhanos, pois então, visíveis que são os seus traços, ainda hoje, aqui e ali e acolá também.
O país indecente inclui, bem no seu interior, terras com nomes como Penedono, Sernancelhe, Linhares da Beira, Sortelha, Monsanto, Piódão, Idanha-a-Velha, Marvão, Monsaraz, Mértola... e podia continuar... terras que nos deixam com um nó na garganta e nos fazem interrogar alto e bom som:
Mas o que é isto?
O que é isto de ter um país indecente onde se continuam a rasgar, de alto a baixo, de dentro para fora e de fora para dentro, vias rápidas, ou auto-estradas, ou lá o que são aquelas feridas abertas por todo o Portugal em obras sem fim, e que se permite a ter estas terras absolutamente despovoadas de gente e onde só restam as vozes débeis dos velhos mesmo velhos, o som dos seus passos lentos pelas calçadas empedradas das aldeias, a visão dos seus corpos curvados e carcomidos pelo tempo e pela dureza da vida já suportada?
O que é isto? Isto é um país solidário? Asseado? Justo? Decente? Responsável?
Pois não é. E sinto que vai uma enormesca distância entre a vida de um qualquer político, destes que nos enlameiam o país, vindos daqui, deste interior onde muitos deles nasceram e cresceram, por certo pisando a merda do gado nos empedrados toscos das ruas, realidade que agora rejeitam, e da qual se envergonham, por certo, nos seus gabinetes xpto da capital, calçando sapatinhos engraxadinhos, talvez Prada, neste país indecente.
Não sei muito, mas uma coisa sei - ou se mudam as políticas neste país ou mais dez anos passarão e as aldeias e vilas do interior, agora com dez, vinte, cinquenta, oitenta, trezentos habitantes, passarão a ter zero e servirão apenas para palco das chamas em terrenos cada vez mais ocupados pelos matos, que teimam em avançar sem que haja dinheiro ou força anímica para os travar.
Este país indecente é o meu, onde habito e de onde me recuso a sair. Apesar da vontade que me vai atacando de quando em vez.
Recuso-me a sair e a desistir dele. Permaneço no seu interior.

6 comentários:

  1. Belo texto, Anabela!
    Eu que nasci e cresci numa aldeia do Interior reconheço a justeza das tuas palavras e compreendo a indignação transmitida pelas mesmas. Portugal parece ser cada vez mais Lisboa e outros sítios onde ainda vão os estrangeiros. O resto é paisagem, para os governantes. Pagaremos bem caro esta política pitosga, liderada por alguém que tem no seu registo de nascimento uma terra do Interior Norte do País, cada vez mais despovoado... É irónico, não é?

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  2. Muito obrigada, Telmo!
    Este texto vinha-me atravessado desde que comecei a descer este nosso país à beira mar plantado, pelo lado de onde não se avista o mar. O que se passa no interior só pode ser caracterizado com uma palavra - escândalo. Porque é mesmo um escândalo de tão aberrante e aflitivo.
    E é irónico, é, ter governantes que provêm daqui.
    Bjs!

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  3. Fiz esse périplo aqui há meia dúzia de anos.
    A sua análise de agora está decalcada da que eu fiz na altura.
    A História é francamente "ridícula" e os indígenas são completamente DESAVERGONHADOS.
    Revolta o cruzar-me com alguém que devendo ter feito algo se...esqueceu...mas nunca se esquecerá que não mais lá voltará.
    Na nossa profissão conheci muitos mas muitos que vindos das brenhas arpoaram aqui no litoral...aqui floresceram na amenidade do clima temperado e da brisa sussurrante...
    mas NUNCA MAIS LÁ VOLTARAM.
    Paz à alma dos que indigentemente por lá ficaram!

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  4. Subscrevo as suas palavras, Hélio.
    A História, neste caso como em muitos outros, é mesmo francamente "ridícula" e os indígenas são mesmo completamente DESAVERGONHADOS.
    Ai Portugal, Portugal...

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  5. Os estrategas de quem conduziu este retangulo, não têm a garra daqueles que dividiram o mundo há 5 seculos, em dois, pese no entanto o carater intruso e expancionista e materialista.
    Nas deslocaçoes musicais de norte a sul do País, vi outrora aldeias e vilas apinhadas de moradores e hoje algumas estão com zero habitantes, lembro Drave, Goirim Loureiro, Massagoso, e saber que morreram lendas e vivencias em tdas elas. Doi imenso. nos locais com pouquissima gente, quando lá vou efetuar percursos pedestres, uns choram, outros agradecem a visita e outros fogem com medo. Já não há que perpetue as historias, os saberes. Até eu já chorei por lembrar factos desses locais e hoje não terem alguem para os relembrar. Quanta lata...

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  6. Compreendo-o bem, José Manuel Amaral! O que se passa neste nosso país dá dó!

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