quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Memórias Amarantinas (Costa Carvalho)


Memórias Amarantinas (Costa Carvalho)

De ler... e chorar por mais. Continuamos a contactar com uma Amarante que já não existe e que é verdadeiramente deliciosa. E que perdura na memória do jornalista amarantino Costa Carvalho.


O MEU GRANDE PEQUENO MUNDO!
Regresso ao passado em Amarante. Tenho 5 anos. O mundo está em guerra; Amarante, também.
Sou volframista; garimpo as minas da imaginação, riquíssimas em micas mais reluzentes do que pirilampos.
Sou, também, mascote, de uma tropa fandanga, fisgas presas com pontas-de-paris nas espingardas de pau. D. Zezinha Carvalhal é a madrinha da bandeira; meu irmão Fernando, o Zé Branco e o Abílio são os comandantes.
Estou de sentinela ao quartel, na Rua de Teixeira de Vasconcelos; os meus camaradas de armas assaltam a torre donde o João e o António Vasconcelos arremessam azagaias. Há cabeças rachadas.
O futebol é uma outra maneira de estar em guerra. Sou, ainda, guarda-redes dos Sampedrenses. Exibições memoráveis, no Terreiro das Freiras e no Campo da Feira, enchem-me os bolsos de rebuçados e de amêndoas. «Ó Alcino, adoça aqui a boca ao Bella Andrazik!», recomenda o Dr. Falcão.
O meu grande pequeno mundo mede o que medem os meus braços bem abertos  Muito mais que o infinito!
Eis-me na Rua de Cândido dos Reis, olhando para o Tâmega. Há tiros de pederneira; dizem-me que para libertarem a florestal soterrada na espessura medonha dos montes.
As pontas dos dedos da minha mão direita chegam até à farmácia do Sr. Arturinho Costa. Encolho lentamente o braço, e vou acariciando ao de leve a casa da Fernandinha Vinagre, a ilha do Pinha, o quartel dos bombeiros com fantásticas sessões de cinema, a casa do Sr. Joaquim Fotógrafo, a rampa de S. Pedro, os perdigueiros do Sr. João Pereira, a loja do Sr. Luís Piné barbeiro.
Com a mão esquerda toco o Hotel Silva, o «Alcino dos Reis com lérias e pastéis embrulhados em papéis», os rebuçados de açúcar em ponto da D. Luisinha Macedo, as técnicas dentárias do Sr. Silva da Farmácia, as longas e lanosas barbas do Sr. Branco, o bilhar russo do Café do Pedro, o café da Zezinha, no largo de S. Gonçalo, onde desaguam o Lila Pé-Oco, o Carlinhos Padreca, o Miki, a Nicó, os Pastas, o Zé Bidorinho. Eu sei lá quanta gente mais!
E a ponte, esse arco-íris de pedra, fronteira leste da minha nação! Os inimigos estão para lá do ferrinho  no Arquinho. O mais perigoso é o Nuno Baptista com quem ando sempre à chanfalhada. espadas feitas de folhas de lírio.
Continuo de braços abertos às saudades do futuro. Nas minhas costas tenho a casa dos Macedos, com muros cheios de lilases e um temível brasão que me espreita, moca em punho. E mais: o terreiro das Freiras, a igreja de S. Pedro, a escola, a cadeia, a casa das Macedas, o campo da Feira.
E, também, o estabelecimento de meu pai, onde, tantas vezes, no verão, pára o Sr. Dr. Joaquim. São os dois Joaquim! Senta-se num mocho alto esverdeado, e a Fernandinha Vinagre corre a buscar o enxota-moscas privativo do senhor doutor. Conversa com meu pai, mas não sei o que dizem. Olho, apenas. Agora, o Dr. Joaquim levanta-se, toma-me pela mão, diz a meu pai que me manda já a correr muito. É só para eu lhe fazer companhia até à rampa de S. Pedro.
Vou com Dr. Joaquim, sempre a mirá-lo com os olhos espantados da coruja nova. Por alturas da casa do Sr. João Pereira, o Sr. Dr. Joaquim pára e chama o "Pasta", que vai no outro passeio. O homem diz bom dia, senhor doutor, o Dr. Joaquim pergunta-lhe não sei o quê, parece-me ouvir falar na velhice dum padre eterno e num qualquer coisa Junqueiro. Terei ouvido bem?
O Pasta fala, fazendo bailar as palavras, e o Sr. Dr. Joaquim escuta, sem se mexer. Eu, só olho; só ouço. O Sr. Dr. Joaquim diz obrigado ao Pasta, liberta-se da minha mão e procura nos bolsos do colete uma moeda que dá ao sapateiro imaginário. E logo tirando outra: «Pega, esta é para ti! Agora, vai direitinho ter com o teu pai, que eu fico daqui a ver-te».
Corro para o futuro! Teixeira de Pascoaes nasceu-ME só aos 12 anos. Até então, apenas existira o Sr. Dr. Joaquim que andava, em noites ensombradas, a falar sozinho, para os lados do cemitério.
Corro atrás da escrita que segue as pegadas deixadas por Teixeira de Pascoaes, nas areias da praia de Francelos.
O mar diz-me que a poesia é a fala da música, e a música o som da poesia. Não sei que ondas terão levado o azulejo onde, na desaparecida clínica de helioterapia, me disseram estar gravado um poema de Pascoaes. Dedicada ao “Exmo Senhor Dr. Álvaro Ferreira Alves”, a poesia diz assim:
Etérea melodia,
Ó sol das alvoradas!
Ó claro sol do dia
A rir e a cintilar,
Que saras as crianças enfezadas,
Entre verdes pinhais, à beira-mar!
E nos campos o trigo amadureces,
E os velhos pobres de pedir aqueces.
E ao toque das Trindades,
Em nós, acendes místicas saudades!
Bendita a tua luz,
Ó sol-Jesus!
Não sei se Pascoaes nasceu há 100 ou há 200 anos; se num dia 2 ou num dia 8 de um qualquer mês. Nem quero saber! Não sou conservador de nenhum registo civil.
Sei que Pascoaes nasceu no futuro de uma poesia cujo tempo de leitura ainda está por vir. E quando a civilização subir à altura das estrelas, será para «uma estranha fantástica descida/ No meio de clarões e de silêncios do além-mundo».
Sei que Pascoaes nasceu para mim quando eu era ainda menino e não precisava de poemas para nada. Ou não é que toda a poesia está inteirinha no coração todo de toda a infância?
Sei, como Rainer Maria Rilke, que também tenho os meus mortos e que não tenho medo de os contemplar. E «quando eles vêm, então têm o direito de permanecer no nosso olhar como todas as demais coisas».
Sei que vai acontecer a renascença de Teixeira de Pascoaes; sei que, tal como Jeová disse ao Deus Infante, o Poeta também poderá afirmar: tu mesma, Amarante, viverás da minha morte. Para sempre!

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