sábado, 30 de março de 2019

Amarante, pelo Direito à Memória... e à Cidadania


Amarante, pelo Direito à Memória... e à Cidadania

Hoje dou a palavra a José Emanuel Queirós que reflecte, em texto escrito com enorme mestria, sobre o debate ocorrido no passado dia 23 de Março, no Café-Bar, em pleno coração/umbigo da urbe.
O mote foi o ante-projecto de Eduardo Souto Moura para a ampliação do mercado municipal de Amarante, da autoria do arquitecto Januário Godinho, e a remodelação do espaço envolvente com a proposta de amputação da alameda Teixeira de Pascoaes e recuo do seu muro de suporte após desaterro do terreno em causa para criação de uma "leirinha", usando a terminologia de uma amiga atenta aos problemas desta nossa cidade, para colocação ao ar livre de umas barracas e bancadas para ampliação do espaço para os feirantes à cota do mercado actual.

PELO DIREITO À MEMÓRIA E À CIDADANIA 

Em alternativa às audiências monocórdicas predispostas aos percursos de sentido único das vias sem retorno, percorridas por poderes fátuos comuns sem freios nem retrovisores – mais hábeis na colocação de pegadas pessoais e no investimento em ‘obra feita’ do que na promoção de diálogos construtivos geradores de consensos alargados –, cidadãos amarantinos tomaram a iniciativa de organizar e levar ao coração da cidade um espaço de debate sobre o programa delineado nos aposentos municipais para reconfiguração espacial da Alameda Teixeira de Pascoaes, na interface com o edifício do Mercado – equipamento projectado pelo risco do arquitecto Januário Godinho (1910-1990), construído no início da década de 1960 – e a margem direita do rio Tâmega. 
Na amena tarde do passado Sábado (23 de Março), a sala de visitas de Amarante estendeu-se do Largo da igreja conventual para o espaço interior do octogenário Café-Bar Restaurante São Gonçalo, contando com o amável contributo da gerência do estabelecimento (Rodrigo Silva) – homónimo do seu fundador, Rodrigo Queiroz –, na súbita reconversão do estabelecimento em improvisado auditório. 
A actualidade da temática anunciada – «Amarante, pelo Direito à Memória» – fazia prever o interesse de muitos amarantinos que guardam na terra a sua origem e nela reservam a própria identidade. A afluência registada veio, assim, superar as melhores expectativas, tantos foram os cidadãos que quiseram tomar parte da iniciativa que, pelas 17 horas, o espaço onde sempre recebeu ilustres amarantinos e cidadãos da cultura deste país – dois, hoje, ali evocados (Teixeira de Pascoaes e Maria Eulália de Macedo) –, pareceu dispor dimensões bem mais limitadas do que oferece nos dias comuns. 
Havendo como pano de fundo a decisão do Presidente da Câmara Municipal pela adjudicação directa do empreendimento ao arquitecto Eduardo Souto Moura – Pritzker da Arquitectura em 2011 – e o ante-projecto urbanístico elaborado para o espaço em questão, teria sido mais-do-que oportuno que, contraente e contratado, tivessem correspondido aos convites que lhes foram dirigidos pela comissão organizadora. 
No remanso das águas do Tâmega de uma Primavera soalheira e morna, se bem pensaram os cidadãos cúmplices da cidade onde têm o seu chão sagrado e nele cresceram com o usufruto das terras e dos patrimónios, assim não interpretaram os protagonistas da espectral criatura, tanto o promotor da conduta do Município, José Luís Gaspar, como o arquitecto responsável da proposta de alteração urbanística que, por motivos distintos, preferiram declinar os convites à participação e ao esclarecimento público. 
No diálogo estabelecido em premissas distintas, havendo lugar à interpelação do cidadão e ao responsável questionamento, com propenso proveito para uma cidade prenhe de memórias onde os modernismos higienizantes podem, muito facilmente, configurar desvirtuamentos, anacronismos e acções descontextualizadas de cunho paradoxal e absurdo, todos teríamos algo a ganhar. 
O agendamento autárquico de uma desnecessária alteração urbanística localizada no núcleo monumental da urbe amarantina levou o lume ao rastilho, e o poder da ignição transformou um não-problema urbano em polémica oficial aberta na sociedade amarantina. Faltou, de certo, a ponderação devida sobre os efeitos impactantes das profundas mudanças configurativas e funcionais preconizadas para aquele espaço da cidade, que evitasse a emersão, ao plano das urgências, do esclarecimento e do debate sobre matéria passiva e consensualizada. 
A partir de então, não há método nem modo democrático de controlo da reflexão pública e da formulação de opiniões múltiplas, nem forma de guiar o pensamento de cada um para terrenos convenientes e circunscritos a algum cioso desiderato. 
A vibração da cidade e o conhecimento das especialidades com que se cosem os poderes deixaram de ser exclusivos de iluminados condutores de homens e passaram a ser susceptíveis de ocorrer tanto melhor em meios desmarcados, onde em ambientes abertos melhor respiram e mais inspiram, e, por suas amplas perspectivas de abordagem revelam-se atraentes à convocação de recursos qualificados disponíveis às partilhas de reflexões indispensáveis ao aprofundamento dos contraditórios e à descoberta de itinerários alternativos. 
O mote para a ‘discussão pública’ estava criado, a organização estava encontrada e o contexto ganhara visibilidade de considerável amplitude, quando, em meados de Fevereiro (13), o semanário Sol publicou um artigo de opinião em que os seus autores, Anabela Magalhaes e Fernando Matos Rodrigues, expuseram seus fundamentos de contestação à radical alteração urbanística projectada, a que lhe seguiu uma reportagem publicada no jornal Público (21/02). 
Honras devidas dirijo à artista plástica Nathalie Afonso pelas ilustrações que, sobre o tema anunciado e o evento, produziu, e a quatro ilustres docentes universitários – Fernando Matos Rodrigues (Antropólogo), José M. Lopes Cordeiro (Historiador), José Costa Carvalho (Jornalista) e António Cerejeira Fontes (Arquitecto) – que, sobre a matéria em apreço, provindo de outros endereços e de áreas distintas do conhecimento, nos seus extraordinários contributos reflexivos trouxeram a chave da razão sensível a memórias cristalizadas, cabendo-me a moderação de um debate sereno que proporcionou saciar ansiedades comungadas e preencheu o coração da cidade nas portas que abriu à formação de opiniões e na expressão aportada à voz pública amarantina.

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