Projecto de Eduardo Souto Moura para Amarante
Fotografias de Anabela Matias de Magalhães
Ideias para Amarante
Por certo, cada cabeça terá uma... pelo menos! e até haverá cabeças que têm muitas mais. A unidade de ideias nunca será possível, a não ser em ditadura e, mesmo aí, será mais uma pseudo-unidade forçada pelo jugo de quem manda. Portanto, começo por assumir que outras opiniões diferentes da minha, desde que fundamentadas, sobre as intervenções projectadas para o Mercado Municipal de Amarante e os seus arredores, terão igual valor.
Posto isto, ontem escutei com todo o interesse as explicações partilhadas pelo arquitecto Eduardo Souto Moura, com uma plateia que esbordava pelo CCA, sobre um projecto que responde a uma específica encomenda feita pelo presidente da Câmara Municipal de Amarante e que prevê a intervenção num edifício classificado e numa envolvente igualmente classificada, já que estamos em pleno coração de Amarante, em pleno centro histórico de Amarante e a intervir em zona envolvente ao seu verdadeiro umbigo, constituído por um património, classificado desde 1910, nosso verdadeiro
ex-libris, constituído pela Ponte Velha, a Igreja e o claustro anexo à igreja de S. Gonçalo.
A intervenção pensada para a ampliação do mercado é, quanto a mim, a mais pacífica, prevendo o acrescento de um módulo que, alterando o edifício, não o desvirtua.
Quanto à intervenção na envolvente do mercado, Alameda de Teixeira de Pascoaes incluída, assumo desde já que espero que nunca saia do papel... apesar das verbas já gastas e a gastar com este projecto ainda antes de ele poder ser submetido a apreciação pelo DGPC.
E passo a explicar as razões que me assistem para assim pensar... depois de muito pensar.
Sim, eu sei que a Alameda nem sempre foi a Alameda e que, antes da intervenção que lhe deu aqueles contrafortes, era logradouro do mosteiro, rampeado para o rio. Sim, existiam umas escadas de que o meu avô falava amiúde, que ligavam o patamar do Largo de S. Gonçalo e fim da Ponte Velha ao nível do rio, bem lá no fundo. Só que, entretanto a vida mudou e foi necessário abrir o terreno da agora alameda, que nem sempre também foi aquilo que é hoje, possibilitando o tráfego que vem da margem esquerda do rio para a margem direita do rio, coisa que ainda hoje acontece. O sentido oposto a este também já foi uma realidade, era realidade na minha infância e acho que até adolescência.
Sim, o tanque/fontanário já esteve lá no fundo, bem mais junto ao rio, na margem direita deste mas entretanto, fruto do aterro necessário para a nivelação da alameda para apanhar a cota da ponte e do Largo de S. Gonçalo, foi transferido, e bem, para a parede do mosteiro onde ainda hoje se encontra adossado.
Certo, mas nada disto tem a ver com um projecto que ontem foi apresentado para esta zona e cuja intervenção eu classifico de buldozer, porque arrasa e desmantela parte do contraforte que sustenta a alameda, desaterra uma boa parte da própria alameda e volta a erguer um contraforte mais dentro do actual, que andará ali pela zona do canteiro central, criando assim duas praças, a actual Alameda que será em grande parte amputada, e uma outra praça à cota do actual mercado, servindo esta plataforma para aguentar com a expansão dos feirantes, à quarta-feira e ao sábado.
Amarante é uma terra especial, não porque é a minha, mas porque lhe reconheço um núcleo muito belo, aninhado mas altaneiro relativamente a um rio que lhe corre aos pés. Amarante nunca foi uma terra exposta ao olhares do mundo no sentido em que, para os visitantes, a terra só se vislumbra na parte que interessa quando o visitante já está em cima dela e a percorre descobrido os seus cantos e recantos. Ok, com a abertura da ponte nova, quem por lá passe e olhe para a sua esquerda, mesmo que não seja de Amarante e dela nunca tenha ouvido falar, por certo soltará uma qualquer exclamação de espanto perante tamanho equilíbrio, beleza, harmonia entre um espaço construído pela mão do Homem e um espaço que, alterado pelo Homem, permanece mais ao sabor da nossa Mãe Natureza e das suas estações.
Amarante é assim encantamento, mistério, romantismo, memória, recato, propícia à descoberta de quem a queira descobrir com olhos atentos, se possível olhos de ver. Amarante não se coaduna com escancaramento, com feira de vaidades, com exposição excessiva para quem chega, com uma arquitectura que eu considero arrogante e espalhafatosa, tal a alteração que provoca numa leitura atenta da cidade, na vida de uma cidade, nos fluxos de uma cidade, na matriz identitária desta mesma cidade.
Estando situados na margem esquerda do rio, nós temos o filme todo da cena. E a cena é composta com dois brutais contrafortes graníticos que sustentam duas praças que ladeiam de igual para igual a Ponte Velha, um outro contraforte construído com igual material. Ao fundo, no Largo de S. Gonçalo, ergue-se o Peitoril, ergue-se a fachada da Igreja de S. Gonçalo e, já na entrada da alameda, a continuidade granítica está assegurada pela capela-mor da Igreja, implantada em sítio improvável. E situados no Largo de S. Gonçalo, na margem oposta à anteriormente tratada, o contraforte granítico continua assegurado e apenas está amenizado pelo casario que escorre desde a Ponte Velha até ao Arquinho, ele próprio contraforte só pontualmente interrompido.
Ou seja, Amarante, que nunca teve cintura de muralhas, situa-se altaneira no vale profundo, sobre e amparada neste granito que é dela e é preciso penetrar nela para a descobrir, o que faz, quanto a mim, muito do seu encanto.
Depois destas objecções, que já não são poucas, temos as árvores que, com este projecto teriam de ser derrubadas e abatidas, transformando as duas plataformas em mais duas eiras áridas onde as temperaturas escaldariam literalmente no Verão, sofrendo a bem sofrer que se aventurasse por estes espaços fora.
E, igualmente importante, por quanto ficaria a execução de um projecto desta natureza, com o desmantelamento de tão brutal muro, com o desaterro de uma quantidade tão brutal de terra... para remontar o muro, pedra pedra, mais atrás, para criar uma plataforma artificial para onde se expandirá, à martelada, um mercado que terá sempre de se fazer, aqui, a céu aberto?
Ainda mais haveria que dizer, mas, para já fico-me por aqui, esperando que o DGPC não autorize nunca semelhante martelada a Amarante. A zona é protegida... valha-nos ao menos isso... talvez...
A bem de um património que é nosso e que nos foi legado pelos nossos antepassados e sobre o qual só devemos intervir com pinças e nunca com buldózeres. A bem igualmente da sustentabilidade das finanças locais.
Nota - Como eu também penso muito sobre Amarante, partilharei com os meus leitores as minhas soluções para a "ampliação do mercado" com muito menos gastos, mais contidas e respeitadoras da nossa identidade local. Penso eu.