Em Jeito de Balanço - A Palavra a Santana Castilho
A banalidade do mal e o sabor dos anos que passam
“Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo o dia.”
José Saramago
1. Passou o Natal das ocas farturas. Por comodidade e interesse, o Natal comercial tem varrido da memória dos homens o verdadeiro Natal, menos fantasioso, aquele em que Herodes, o Grande, ao saber do nascimento do Rei dos Judeus, mandou assassinar todos os recém-nascidos em Belém, para varrer o alegado concorrente. Segue-se a passagem de ano e é tempo do habitual balanço.
Em 2017, Portugal tornou-se moda para os turistas. Em 2017, assegura a santa madre Estatística, cresceu a economia, cresceu o emprego e registámos o mais baixo défice desde 1974. Em 2017, saímos do procedimento por défice excessivo e recebemos bulas purificadoras das agências de rating. Em 20017, um dos diáconos do totalitarismo financeiro, mas nosso, arrebatou o ceptro do Eurogrupo.
Prestes a findar 2017, o parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado de 2016 foi claro: de 2008 a 2016, foram-nos extorquidos 14,6 mil milhões de euros para acudir aos desmandos de banqueiros e amigos, soltos e impunes. Em 2017, os incêndios florestais fizeram 111 mortos e 350 feridos.
Em 2017, um político que foi de férias quando meio Portugal ardia, considerou saboroso o ano que finda.
Imagino como seria cómoda a vida de um governante que não se importasse com nada nem ninguém. Mas será possível governar sem se importar? Será possível governar sem a capacidade de nos colocarmos na pele daqueles que não conhecemos, mas sofrem? Será possível governar sem amar? No coração de quem ama, os êxitos efémeros não apagam o sofrimento perene nem as alegrias superficiais afastam a dor mais funda.
2. Felizmente recuperado das vertigens e falta de equilíbrio que a síndrome vestibular aguda lhe provocou, o ministro Tiago Brandão Rodrigues foi à Chamusca e caiu do cavalo da demagogia. Embalado pelo trote das referências à “metodologia expositiva” (Estado da Educação 2016, CNE, págs. 7, 27 e 28), alegadamente usada em excesso pelos professores, e instado a pronunciar-se sobre a matéria (PÚBLICO, 15.12.17), passou ao galope: “...esses dados dizem respeito ao ano lectivo 2015-2016, cujo início foi ainda da responsabilidade do anterior Governo. Tivemos a oportunidade de, sabendo nós como o estado da educação se apresentava nesse ano lectivo, poder desenvolver novas políticas públicas para dar resposta à estaticidade das salas de aula...”
Estática esteve a leitura do relatório por parte do patusco ministro. É que “esses dados” referem-se a 2012, como está no relatório que Tiago não leu. E a poderem, inquisitoriamente, ser ligados de modo isolado a algum Governo, então seria... ao do PS (Lurdes Rodrigues e Isabel Alçada).
3. A 19 deste mês, a página institucional da DGAE ofereceu-nos um texto de antologia propagandística sobre as inovações, velhas de décadas, do secretário de Estado João Costa, autor da prosa. Sob a epígrafe “Autonomia, Liderança e Participação”, disse-nos João Costa:
“O insucesso não é, pois, o problema de uma taxa que queremos reduzir, mas sim o problema de qualidade das aprendizagens e de justiça social que precisamos de resolver.”
O engenho ensaísta do secretário de Estado antecipou uma probabilidade inovadora: a taxa pode aumentar mas o insucesso diminuir. É uma questão de reescrever o que entendemos por qualidade das aprendizagens. E a caneta pedagógica é ele que a tem.
4. A secretária de Estado Alexandra Leitão, em representação do Governo, assumiu o compromisso de negociar com os sindicatos o modelo da recomposição da carreira dos professores, tendo por referência o actual estatuto, por forma a ser possível a recuperação do tempo de serviço. No exercício negocial em curso, o Ministério da Educação divulgou números falsos sobre as correspondentes implicações financeiras, com o óbvio intuito de iludir a opinião pública. Este procedimento é próprio de aldrabões. Apesar de deselegantes, há momentos em que determinadas palavras têm que ser usadas.