Uma Classe Zombie e Um Ministro Bárbaro
Uma classe zombie e um ministro bárbaro - Crónica de Santana Castilho
Numa sexta-feira, 13, a tampa
de um enorme esgoto foi aberta ante a complacência de uma classe que parece
morta em vida. Nuno Crato exigiu e ameaçou: até 13 de Julho, os directores dos
agrupamentos e das escolas que restam tiveram que indicar o número de
professores que não irão ter horário no próximo ano-lectivo. Se não indicassem
um só docente que pudesse vir a ficar sem serviço, sofreriam sanções. Esta ordem
foi ilegítima. Porque as matrículas e a constituição de turmas que delas derivam
não estavam concluídas a 13 de Julho. Porque os créditos de horas a atribuir às
escolas, em função da deriva burocrática e delirante de Nuno Crato, não eram
ainda conhecidos e a responsabilidade não é de mais ninguém senão dele próprio e
dos seus ajudantes incompetentes. Não se conhecendo o número de turmas, não se
conhecendo os cursos escolhidos pelos alunos e portanto as correspondentes
disciplinas, não se conhecendo os referidos créditos, como se poderia calcular o
número de professores? Mas, apesar de ilegítima, a ordem foi cumprida por
directores dúcteis. Como fizeram? Indicaram, por larguíssimo excesso, horários
zero. Milhares de professores dos “quadros” foram obrigados, assim, a concorrer
a outras escolas por uma inexistência de serviço na sua, que se vai revelar
falsa a breve trecho. Serão “repescados” mais tarde, mas ficarão até lá sujeitos
a uma incerteza e a uma ansiedade evitáveis. Por que foi isto feito? Que sentido
tem esta humilhação? Incapacidade grosseira de planeamento? Incompetência?
Irresponsabilidade? Perfídia? Que férias vão ter estes professores, depois de um
ano-lectivo esgotante? Em que condições anímicas se apresentarão para iniciar o
próximo, bem pior? Que motivação os animará, depois de tamanha indignidade de
tratamento, depois de terem a prova provada de que Nuno Crato não os olha como
Professores mas, tão-só, como reles proletários descartáveis? É de bárbaro
sujeitar famílias inteiras a esta provação dispensável. É de bárbaro a
insensibilidade demonstrada. Depois do roubo dos subsídios, do aumento do
horário de trabalho, da redução bruta dos tempos para gerir agrupamentos e
turmas, da tábua rasa sobre os grupos de recrutamento com essa caricatura de
rigor baptizada de “certificação de idoneidade”, da menorização ignara da
Educação Física e do desporto escolar, da supina cretinice administrativa da
fórmula com que o ministro quer medir tudo e todos, da antecipação ridícula de
exames para o início do terceiro período e do folclórico prolongamento do
ano-lectivo por mais um mês, esta pulseira electrónica posta na dignidade
profissional dos professores foi demais.
Todas as medidas de intervenção
no sistema de ensino impostas por Nuno Crato têm um objectivo dominante: reduzir
professores e consequentes custos de funcionamento. O aumento do número de
alunos por turma fará crescer o insucesso escolar e a indisciplina na sala de
aula. Mas despede professores. A revisão curricular, sem nexo, sem visão
sistémica, capciosa no seu enunciado, que acabou com algumas disciplinas e
diminuiu consideravelmente as horas de outras, particularmente no secundário,
não melhorará resultados, nem mesmo nas áreas reforçadas em carga horária. Mas
despede professores. Uma distribuição de serviço feita agora ao minuto, quando
antes era feita por “tempos-lectivos”, vai adulterar fortemente a continuidade
da leccionação das mesmas turmas, em anos consecutivos, pelos mesmos professores
(turmas de continuidade), com previsível diminuição dos resultados dos alunos.
Mas despede professores. As modificações impostas à chamada “oferta formativa
qualificante”, mandando às urtigas a propalada autonomia das escolas,
substituídas nas decisões pelas “extintas” direcções-regionais (cuja
continuidade já está garantida, com mudança de nome) não melhora o serviço
dispensado aos alunos. Mas despede professores.
Ao que acima se enunciou, a
classe tem assistido em letargia zombie. Não são pequenas ousadias kitsch ou
jograis conjuntos de federações sindicais, federações de associações de pais e
associações de directores, carpindo angústias e esmagamentos, que demovem a
barbárie. Só a paramos com iniciativas que doam. Os professores têm a
legitimidade profissional de defender os interesses da classe. Digo da classe,
que não de cada um dos grupos dentro da classe. E têm a responsabilidade cívica
de defender a Escola Pública, constitucionalmente protegida. Crato vai
estatelar-se e perder-se no labirinto que criou para o ano-lectivo próximo.
Perdidos tantos outros, é o tempo propício para um novo discurso político,
orientador e agregador da classe. A quem fala manso e age duro, urge responder
com maior dureza. Lamento ter que o dizer, mas há limites para tudo. Como? Assim
a classe me ouvisse. Crato vergava num par de semanas.
In Público, 18/07/2012
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