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A Palavra a Maurício Brito
Quem somos:
Pertenço a um grupo de professores, sem ligações partidárias ou sindicais, que nunca compreendeu como o governo conseguiu chegar ao célebre número de 600 milhões de euros de despesa anual com a contabilização do tempo congelado da carreira docente. Pareceu-nos, desde o início, um valor excessivamente elevado.
Porque foram feitas as contas:
O objetivo foi tentar perceber de que forma o governo chegou a esse valor. Foi afirmado diversas vezes, através de comunicados do Ministério das Finanças, do Ministério da Educação ou por elementos do próprio governo – inclusive o próprio primeiro-ministro -, que a exigência dos professores na recuperação total do tempo de serviço congelado para efeitos de carreira, corresponderia, e cito, “a um aumento permanente da despesa de 600 milhões de euros por ano” e que isso seria incompatível com “o compromisso com a sustentabilidade das contas públicas”. Ora, não sendo especialistas na área das finanças, mas não tendo esquecido como se fazem operações aritméticas mais básicas, tornou-se fundamental para nós averiguar esse valor. Tendo uma noção das variáveis que entram nesta equação, era evidente que os números apresentados pelo governo e que ganharam eco na comunicação social seriam tremendamente excessivos.
Que variáveis são essas e como foram feitas as contas:
Fundamentalmente duas: o número de professores por ano de cada escalão e as tabelas de vencimentos da carreira docente. Através de dados que são do domínio público – um documento entregue pelo Ministério da Educação aos Sindicatos numa reunião realizada no dia 24 de janeiro de 2018, em que é apresentado o número de professores que se encontram em cada ano de cada escalão, e as tabelas de vencimentos da Carreira Docente -, foi realizado um trabalho que pretendeu avaliar o peso que a progressão de todos os docentes teria na despesa do Estado Português com a contabilização dos 9 anos 4 meses e 2 dias. Primeiramente, foi feito um estudo simulando a contabilização de todo o tempo, de uma só vez, no dia 01 de janeiro de 2018. Posteriormente, já este ano, foram feitos dois estudos: um tendo em conta a contabilização total no dia 01 de janeiro de 2019, numa única vez também, e outro onde as contas apresentam os resultados de uma solução faseada em 7 anos, copiando a encontrada na Região Autónoma da Madeira.
Os resultados a que chegámos:
De uma forma resumida, podemos afirmar que a despesa do Estado rondaria os 300 milhões de euros – metade do valor que o governo apresenta. E que se falarmos numa solução como a encontrada na Madeira, ou seja, diluída em 7 anos, não chega a 50 milhões de euros (acumulativos) anuais. Como explicar essa diferença: Para isso seria fundamental entender como chegou o governo aos números que apresenta. A verdade é que os cálculos que alicerçam esse repetido valor de 600 milhões nunca foram apresentados. Nem mesmo o grupo de trabalho, pretensamente criado pelo governo no ano passado para produzir uma estimativa rigorosa dos custos das progressões, apresentou quaisquer resultados até ao momento. Vários grupos parlamentares já solicitaram as contas ao governo e, até agora, nada. De qualquer forma, acreditamos que a diferença se justifica, fundamentalmente com a apresentação por parte do governo de valores ilíquidos, englobando despesas e receitas nas mesmas contas.
Qual a explicação para nunca terem sido apresentadas as contas pelo governo:
Acreditamos que pelo facto de não ser possível chegar a esses números afirmando que se tratam exclusivamente de despesa. Os 600 milhões englobam valores que entram nas receitas do Estado, logo, que não podem ser apresentados como despesa. E também pelo facto de não interessar ao governo dizer que uma solução como a aplicada na Madeira acarretaria uma despesa líquida anual que não chegaria, sequer, a 50 milhões de euros. O que seria da credibilidade de um governo que afirmou vezes sem conta que o estado gastaria mais de 600 milhões de euros anualmente se tivesse que assumir que uma solução faseada acarretaria num acréscimo anual inferior a 50 milhões líquidos, ou seja, um valor 11 vezes inferior ao que sempre apresentou? Por isso afirmamos que a argumentação da sustentabilidade das contas públicas é, nesta matéria, um escandaloso logro.
De qualquer forma são valores muito diferentes:
Mesmo que o governo afirme que do ponto de vista da contabilidade orçamental apresenta o valor ilíquido, ele tem forçosamente de dizer que os impostos entram na rúbrica das receitas. Temos de ser sérios quando falamos de contas públicas, principalmente quando temos responsabilidades directas na matéria. Será politicamente correcto afirmar que a despesa do estado com esta contabilização ronda um montante sem referir que nesse valor está contabilizado o que é/seria retido na fonte dos salários de todos os professores? Os 600 milhões são um mito facilmente desmontável. Estranho é que ninguém com responsabilidades tenha, até ao momento, demonstrado verdadeiro interesse em estudar a veracidade desse valor.
O que temos feito para confirmar as nossas contas:
Desde janeiro deste ano que tentamos submeter as nossas contas e os próprios números apresentados pelo Governo sobre o custo da recuperação integral do tempo de serviço docente a um estudo especializado. Iniciámos um processo de contactos a vários níveis, desde empresas reconhecidas na área da auditoria até investigadores universitários na área da Educação e Finanças, deixando sempre claro que o mesmo seria pago. Foram cerca de 20 contactos efetuados até ao momento. Realço que alguns deles foram feitos a empresas de auditoria das mais famosas a nível nacional e mundial, como a Deloitte, a Ey Portugal, a UHY ou a Grant Thornton Portugal.
Quais foram respostas:
Estranhamente (ou não), houve contactos que ficaram sem qualquer resposta e outros que, pelas mais variadas razões, optaram por recusar realizar tal estudo. Houve respostas, digamos, para todos os gostos. Fundamentalmente, a justificação para a maior parte das recusas foi a existência de compromissos anteriormente assumidos.
A minha estranheza:
Algumas empresas – nenhuma das acima citadas, deixo já claro – optaram por responder telefonicamente, recusando o estudo, alegando que a exposição mediática de um trabalho desta natureza poderia ser-lhes prejudicial. O mais curioso foi ouvir algumas afirmarem que os nossos números estariam correctos e que o governo não deveria apresentar como despesa efectiva um total ilíquido, ou seja, que não consideravam sério afirmar que a despesa seja a apresentada de 600 milhões anuais.
Como entendo estas recusas:
Estamos perante um governo que recorreu à desinformação e à ocultação de dados, unicamente para dominar o debate público da questão. Hoje, todos os comentadores falam dos famosos 600 milhões como uma verdade indesmentível quando na realidade a despesa efectiva não chega a 300 milhões. E que diluída em 7 anos, como na Madeira, fica em menos de 50 milhões anuais. Ora, muito mal está a nossa democracia quando ao querer combater a inverdade através da divulgação de contas precisas, acabamos por assistir ao medo dos que receiam sofrer represálias do poder instalado. É frustrante verificar a dificuldade da elevação do direito de todos à informação precisa, para que cada cidadão possa fazer o seu juízo baseado na transparência de dados correctos. E isso tudo, repito, devido ao receio que muitos sentem do prejuízo que uma exposição mediática possa trazer. Muitos estão reféns do poder e isso é naturalmente preocupante numa sociedade que se pretenda livre e independente.
O que julgo estar em causa:
Há muita desinformação, muitas inverdades repetidas por diversos comentadores que, admito, no caso de alguns, seja por manifesto desconhecimento. O governo lança um número para o ar e muitos assumem que será mesmo verdadeiro. Mas o que está aqui em causa é a base de um argumentário que desmorona por completo, caso a verdade seja conhecida: a “sustentabilidade das contas públicas” tornou-se no fundamento que suporta toda a defesa de uma lógica que deu corpo ao decreto do governo que recupera apenas 2 anos 9 meses e 18 dias. Não são poucos os especialistas na matéria que afirmam que as flagrantes inconstitucionalidades e atropelos ao Código de Procedimento Administrativo estão a ser “esquecidas” ou postas de lado devido à apregoada sustentabilidade orçamental. E isto tudo roça o obsceno, pois na realidade estamos a falar de números muito inferiores. Atrevo-me mesmo a dizer que a contagem de todo o tempo de serviço de todas as carreiras especiais, numa solução como a encontrada na Região Autónoma da Madeira, acarretaria num aumento da despesa efectiva das contas públicas que não chegaria aos 90 milhões de euros anuais ao longo de 7 anos. São números abissalmente distintos: basicamente, o que o governo afirma que gastaria com os professores por ano é o que gastaria com todas as carreiras especiais ao fim de 7 anos. E isto é grave, muito grave.
O que espero que aconteça no dia 16/04, quando o decreto do governo for colocado a apreciação parlamentar:
Não tenho grandes esperanças de que os partidos da oposição cheguem a um consenso nessa matéria. No fundo, o descontentamento da classe docente é algo que, infelizmente, é desejado por muitos, pelos mais diversos motivos. Troca-se, assim, uma fundamental paz nas escolas pelos interesses de agendas, o que é vergonhoso. Nesse mesmo dia será votada, além das propostas de cada um dos partidos que solicitaram apreciações parlamentares, uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos, que obteve mais de 20000 assinaturas e que considera que a reposição deveria ser toda feita de uma só vez. Se houvesse verdadeira coragem e vontade política, essa deveria ser a solução adoptada, pois a despesa do estado não chega, efectivamente, a metade da que nos venderam a todos como verdadeira e que, diziam, colocava em causa as contas públicas. Já para não falar que este decreto do governo, a não ser que seja adaptado, fere inequivocamente normas legais ao permitir ultrapassagens entre colegas. A verdade é que todos os partidos, sem excepção, terão enormes responsabilidades neste flagrante atropelo a leis e direitos, uns porque deixaram que isto se arrastasse até a um ano eleitoral, outros porque pretendem que se arraste por mais tempo. Mas pior na fotografia ficarão os que justificarem as suas posições à luz de uma pretensa sustentabilidade orçamental. De qualquer forma, é minha convicção que mais cedo ou mais tarde, através dos tribunais, esta situação será revertida. A contagem do tempo de serviço congelado é algo que ultrapassa a barreira do moralmente justo ou correcto: estamos a falar da aplicação da justiça, da prática do que é de direito.
O tempo não se apaga: conta-se. Todo e para todos, sem excepção.
Maurício Brito
Nota - Via
Paulo Guinote