sábado, 4 de julho de 2009
Querida Eulália
Maria Eulália Macedo - S. Gonçalo - Amarante
Fotografia de Anabela Matias de Magalhães
Querida Eulália
“Querida Eulália
Escrevi-te uma carta. Uma carta entreaberta. Uma carta de amor. Hoje não serei grave, porque não é dia de endurecer o rosto e a alegria é para os vivos, como disse o Almada, a coisa mais séria da vida! Hoje é um dia alegre, querida Eulália, porque se reeditam as tuas Histórias de poucas palavras, que não é um livro, mas uma prova de amor, a confissão poética de que o esquecimento, a morte e as trevas que tantas vezes escurecem os nossos corações não terão a última palavra. As tuas Histórias de poucas palavras não são apenas páginas impressas, amortalhadas numa capa bonita; não se trata de um livro como outros livros: fala do milagre de ser e existir no espaço e no tempo, fala do sabor das amoras, da alegria do mundo. Eu não li as tuas Histórias de poucas palavras, querida Eulália, eu vivi-as tão intensamente, que a tua mãe foi, por um momento, a minha mãe; depois foi o cheiro húmido da terra, a intimidade de um gesto condescendente com a morte, a vida inteira redimida numa palavra, algo mais puro ainda; depois foram os retratos, os antigos retratos que habitam o teu mundo, Eulália, esses fantasmas que habitam o meu mundo, como se tivéssemos vivido na mesma casa, na mesma casa desde sempre, porque a tua casa é antiga como o Marão, antiga como o mundo.
Escrevi-te uma carta, esta carta entreaberta. Uma carta de amor. Escrevi-a porque sei como são as manhãs transparentes de Fevereiro, porque também eu suspendo a respiração à hora da chegada do correio. Escrevi-a porque nasci num mundo de homens que cabe nas caixas que guardam os livros que herdaste da tua avó paterna; mas estas tuas Histórias de poucas palavras não cabem neste livro, como não cabem nos livros que herdaste da tua mãe; nelas existe um mundo de mulheres, de mulheres que são lugares recuados em que as mãos descobrem os filhos, esses lugares fundos, luminosos por dentro; essas mulheres que são como mesas para que os filhos cresçam em seu redor; que são casas em que há afectos, como brinquedos, espalhados pelo chão; as mulheres de Histórias de poucas palavras são isso e outra coisa, ou nem uma coisa nem outra, não têm nome ou chamam-se Maria Ondina, Olímpia, Maria Branca ou Lídia; podem ser as mulheres do Marão (de que não falam as Crónicas da Raça) ou as mulheres da tua Rua; podem ser as mulheres da minha rua, da minha infância, mulheres sem idade, carpindo as perdas, lambendo as feridas ou amadurecendo o útero na opacidade comovida da sua juventude.
Querida Eulália, escrevi-te esta carta porque conheço a tua terra como se nela tivesse nascido ou nela tivesse morrido, antes desta diáspora; conheço o teu Rio, comove-me sempre a tua Nossa Senhora da Ponte, com o seu sorriso de granito e o Filho nos braços. Também eu amo Pascoaes, Eulália: recordo-me do Poeta a enrolar um cigarro no escrupuloso labor dos dedos telúricos, recordo-me dos versos: “Quem és tu? De onde vens? Na tua fronte/ Paira o vago crepúsculo infinito/ Da distância... […] Há nas tuas palavras um abismo./ Ouvindo-as logo sinto uma vertigem,/ E, em sobressalto, chora e se lastima/ O que, em mim, é vedado, oculto e virgem./ A parte indefinida do meu ser/ Ama a sombra espectral em que desvairas.../ E nem, ao menos, posso compreender/ Esta força amorosa que me leva/ Para a tua loucura!”
Escrevi esta carta, querida Eulália, porque conheço o rumor dos dias, a lenta passagem das horas. Escrevi-a porque conheci a tua casa: o S. Jorge que guarda a entrada nas pausas da sua luta eterna contra a serpe; o granito por fora, as madeiras por dentro; os velhos livros, os retratos espectrais, o modo natural e orgânico como a casa cresce e se abre para um jardim, com flores e árvores de fruto numa certa desarrumação romântica. Escrevi esta carta de amor porque me comove a tua lucidez, o modo como arrastas a voz oracular, que se exprime em aforismos e se sobrepõe ao meu pensamento. Escrevi-a, querida Eulália, porque escuto a urze e conheço o silêncio das tardes de Outono, quando os pássaros não voam e as nuvens se deitam na cama dos rochedos mais altos.
Nas tuas Histórias de poucas palavras pulsa uma comovida humanidade, um amor raro pela terra, sem asfixia; um amor raro pelas pessoas, sem paternalismos ou maternalismos; um amor raro que habita quem acredita e inaugura nas suas palavras um emergente «Ciclo do Amor». Querida Eulália, não sei como dizer-te que sinto que guardas o futuro. Nasceste em Amarante; mas tu não pertences a Amarante, nem ao mundo, que o mundo é exíguo para pessoas com as tuas dimensões. Tu pertences, nas palavras de Sophia, à raça daqueles que “percorrem o labirinto/ Sem jamais perderem o fio de linho da palavra”. Tu pertences a Deus.
«Serás tu o Cristo, Maria Eulália?» “Não casei, não ganhei dinheiro, nem sei de sistemas políticos para salvar a humanidade”. O que é que te salva, Maria Eulália? O que é que move a tua mão escrevente. O poeta José Tolentino Mendonça disse que “o que move a mão escrevente é uma qualquer compaixão pela vida, nua, pobre, passada, inocente, esquecida, sussurrante, amante, quase nada. […] «E a ti, o que é que te salva?» Oh, os que não sabem que a mão escrevente é a mão que salva!”
Vou terminar esta carta, Eulália. Desculpa-me. O que poderia eu dizer sobre ti ou sobre as tuas Histórias de poucas palavras? O que sei eu? Tinhas meio século de vida quando eu vi pela primeira vez a luz; nasceste no Equinócio da Primavera, eu nasci no Equinócio de Outono, talvez por isso a tua juventude e a minha velhice nos torne tão próximos. Por estes dias, as tuas Histórias de poucas palavras salvaram-me: “Nunca mais temerei os anjos metálicos da angústia e da destruição, podem vir purificar-me os lábios com uma brasa de fogo e de insatisfação”. E sempre que me lembrar de ti, estremecerei com os versos de Herberto Helder: “Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta/ do gosto, o entusiasmo do mundo”.
Sempre teu,
José Rui Teixeira”
Nota - Com os meu agradecimentos à Elsa C. que me enviou esta belíssima carta entreaberta, lida ontem, em público, a Maria Eulália Macedo.
A cerimónia foi bela e bela é a homenageada!
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11 comentários:
A tua fotografia é fantástica e o texto brilhante!
Obrigada, Elsa C.
O texto é brilhante e a intervenção da Menina Lalinha foi simplesmente deliciosa.
Foi um fim de tarde em beleza.
Beijocas
Tens razão: ficaríamos a ouvi-la contar histórias o resto da noite. E o seu ar teatral, o seu tom dramático? Que personagem deliciosa!
Quantos anos tinha a M. Eulália na tua foto?
Quem é a Maria Eulália? (Desculpa a minha ignorância)
Adorei a carta e achei a fotografia um primor.
jinho
É certo, Elsa C., ficaríamos a noite toda a ouvir as suas histórias, tão ricas, duma Amarante que não existe mais, mas da qual ainda guardo também algumas memórias. Recordo as lavadeiras que lavavam a roupa nas pedras do rio e que povoam a minha infância.
A rua dela é a rua dos meus avós paternos e é agora minha também. E sinto orgulho nisso, muito embora me desgoste a rua vazia de vozes e risos, as casas fechadas e despovoadas de gente. Enfim! Mágoas amarantinas.
Quanto à idade da Lalinha calculo que deveria ter à volta dos 40 anos, nesta fotografia. Vou ver se confirmo com a própria.
Bj
Olá Em@
Leste os meus dois posts anteriores sobre esta personagem amarantina? Tens um escrito na quinta-feira passada e um mais antigo que linkei a esse.
A Menina é a pessoa mais marcante da minha rua. Aqui nasceu e viveu toda a sua vida, no seio duma família importantíssima da região.
Foi minha professora de Moral no Ciclo Preparatório e guardo excelentes recordações dela enquanto professora. Frequentadora do café do Largo de S. Gonçalo, que foi do meu avô, é aqui que ainda hoje a vamos encontrando para tertúlias inesquecíveis com uma pessoa que não manda recados por ninguém. Cada vez que a encontro chego a casa com montes de coisas para contar. A Eulália é uma excelente contadora de histórias. E fruto da sua avançada idade, a rondar os 90, é um repositório de memórias incrível, ela que privou com Teixeira de Pascoaes, Sofia, Pinheiro Torres e tantos, tantos outros.
Eulália é ainda escritora e poetiza, uma mulher que sempre pensou pela sua cabeça, numa terra fechada sobre si própria como é a minha, mas que, por vezes concebe uns filhos de génio.
Eulália está na primeira linha das pessoas ilustres cá do burgo.
Parabéns a Eulália e a ti, por no-la dares a conhecer!
Beijocas
De nada, Dudú. É sempre um prazer enorme para mim falar de gente realmente interessante. E este é o caso.
Não devo ter lido...mas vou agora ler. Só te digo uma coisa, adorava conhecer a tua bezinha de rua...
Sei que amarias... é que ela é tetral, intensa, verdadeira que nem sonhas!
Lê e depois diz-me alguma coisa.
Bjs
Já li os 2 posts. (tinha deixado referência no post do tonto)
Pessoas assim são intemporais , não é? Tal como a tua fotografia. E volto a repetir: o que eu gostava de a conhecer...
Obrigada por nos teres dado a conhecer a pessoa e a escrita. Esta soube-me a pouco...
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