sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Michel Giacometti - Memórias

Gravação da Chula de Carvalho de Rei - Serra da Aboboreira
Fotografia de Artur Matias de Magalhães

Michel Giacometti - Memórias

Sobre os 26 anos da sua morte, dou a palavra ao meu irmão José Emanuel Queirós.
Com uma correcção: o povo continua a cantar.


26 ANOS COM A MEMÓRIA DE GIACOMETTI
Michel Giacometti (Ajaccio, 8 de Janeiro de 1929 - Faro, 24 de Novembro de 1990)
Ao perfazer 26 anos sobre a partida de Michel Giacometti deste mundo para algum endereço etéreo onde a etnomusicologia terá seu lugar cativo no concerto dos deuses, relembro um texto de homenagem produzido à época e publicado em «O JORNAL de AMARANTE», com o título
O POVO NÃO VOLTARÁ A CANTAR
Algures neste país, numa pequena aldeia alentejana, que o seu último desejo retirou ao anonimato, estarão, por certo, a decorrer os últimos cerimoniais por um Homem que, embora nascido corso, e depois de percorrer meio mundo (vide “O Jornal de Amarante” N.º 471, de 14 de Setembro de 1988) à procura do verdadeiro e justo sentido que quis dar à sua existência, entregou apaixonada e abnegadamente toda a sua vida ao Povo português, à prospecção e ao estudo das raízes da sua autêntica identidade cultural, e a quem num acto simbólico de gratidão e reconhecimento devolveu, em último gesto, tudo o que tinha de verdadeiramente seu.
Nesta minha modesta homenagem que, a distância que Peroguarda de Amarante separa, me impede, de outro modo, testemunhar a gratidão da sua sincera amizade, reúno parcimoniosamente todos os sinais que da sua presença conservo, e elevo o meu pensamento para a memória que de Michel Giacometti resguardo. E recordo o tom grave da sua voz (exprimindo-se em correcto português, com ligeiro sotaque que denunciava as suas origens gaulesas) em último telefonema que, acerca de cinco ou seis semanas me fizera.
Grave era o seu timbre natural de voz, mas mais se acentuava naquele sábado do modo com que referia ter “eliminado Amarante dos seus itinerários”, e excluído da Antologia de Música Popular Portuguesa, que estava a preparar, as recolhas por cá efectuadas (vide “O Jornal de Amarante” N.º 472, de 21 de Setembro de 1988). As suas palavras tinham, compreensivamente para mim, a determinação que lhe reconhecia, mas a dureza que nunca lhe havia encontrado, nem sequer nas longas conversas que ambos tivemos em Amarante sobre a relação de suspeita e desconfiança que o Estado Novo mantivera consigo e com o seu trabalho, em relatos nos quais colocava a dose de ironia e de desculpa correspondente ao insustentável grau de parvoíce e de ignorância que os mais fiéis servidores do Regime naturalmente exibiam.
Hoje associo esse último contacto do Dr. Giacometti ao prenúncio da sua despedida definitiva de mim, à reafirmação – a quem sempre o escutara com atenção – do auge do seu desalento com os poderes e as autoridades deste país, em manifestação da sua máxima expressão de impotência perante a vida que em si se esvaía e com ela o seu desespero em crescendo porque o trabalho efectuado ao longo de 30 anos ficava só no começo. Que a doença, pelos visto, já o acompanhava nos seus derradeiros percursos, e poucos dias depois o havia de conduzir ao termo da sua vida, em qualquer leito de hospital na cidade de Faro, nas condições que outros jornais relatam.
O inabalável respeito pelas diferenças que procurava intimamente conhecer e justificava com minúcia, apoiado em conhecimentos musicais que reuniu e lhe terão facultado um ímpar apuro de memória e selectividade auditiva, e as sinceras e profundas amizades que cultivava, creio que lhe deverão ter marcado, em definitivo, a sua opção e percurso de vida, denúncias da particular dimensão de Homem, de cultura invulgar, de trato simples e afável, modesto e despreocupado no trajo, marcado por um estilo de vida singelo mas exigente que levava, dedicado em apostolado quase messiânico a uma causa de dimensão Nacional, que Portugal e os seus diferentes representantes não souberam, nunca, compreender.
Michel Giacometti conhecia o país e as suas múltiplas diversidades regionais, na sua dimensão física, cultural e humana, certamente como poucos portugueses. Os seus longos e penosos percursos preparava-os minuciosamente em Cascais, aonde vivia na Rua dos Navegantes, e de onde partia para a sua investigação, que daí o levava até à aldeia mais remota de Trás-os-Montes, ao interior da Serra Algarvia, num acervo de recordações e histórias antes vividas. Lembro aquela, que ele um dia me contou, passada com um pastor que observando atentamente a juventude de uma amiga que o acompanhava, e achando-a boa para o trabalho no montado, lhe propusera a sua troca por um porco; como não me esqueço das condições e do quadro de vida de uma família, em Outressa (freguesia de Ovil, em Baião) que ambos fomos encontrar em tentativa de recolha de “encomendação das almas”, e que o levaram a exclamar: “se o Bergman cá viesse caía de joelhos.” Testemunhos de um país ainda medievo, na Europa.
Sem receios, mas com extrema precaução, Giacometti deixava o alcatrão das estradas e trocava-o pelos mais difíceis caminhos e veredas empoeirados, em lenta marcha que impunha à sua viatura, cor creme, com alguns sinais de corrosão, levando consigo em ansiedade latente o desejo e a pressa de chegar, e a angústia consciente de já chegar tarde.
Agora, que Michel Giacometti nos deixou sós na solidariedade que nos dedicou, num rol de projectos por concretizar, se esfumou o sonho que um dia tivera de se instalar em Carvalho de Rei durante dois meses, que pela localização e altitude considerava as condições ideais para a sua saúde, e daí lançar as suas exaustivas prospecções à região. Ganha razão a mágoa funda que sentia de não conseguir deixar quem, com a mesma dedicação, a mesma honestidade, e o mesmo rigor fosse capaz de dar continuidade ao seu trabalho.
É 25 de Novembro de 1990. Neste dia em que Portugal se despede de Michel Giacometti e o seu Povo deixa de ter quem o queira ouvir cantar, fico com um endereço e um número de telefone impossíveis, em incontida saudade, enquanto a RTP no seu Jornal de Domingo noticiava poeticamente a morte de um golfinho numa qualquer praia do rio Tejo.
Amarante, 25 de Novembro de 1990

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