A Palavra a Pedro Lomba
Uma imprensa robusta e desinibida
Por Pedro Lomba
Às vezes grandes juízes, na sua discrição de gabinete, são mais relevantes do que grandes políticos. Apresento-vos um. William Brennan serviu no Supremo Tribunal dos Estados Unidos ao longo da segunda metade do século XX. Chegou àquele órgão máximo em época difícil. É sabido que os anos 60 e 70 na América foram décadas de divisões profundas, tensões raciais e protestos contra o governo.
Toda essa litigância traduzia tremendas fracturas da sociedade americana. Tal como hoje acontece, o Supremo Tribunal assumiu uma função arbitral. Brennan ficou célebre pelas suas opiniões em defesa dos direitos civis. No conjunto, o seu “liberalismo” mudou a orientação da justiça americana em matérias sensíveis como o aborto, a discriminação racial ou a liberdade de imprensa.
Ultimamente tenho regressado a uma das opiniões mais marcantes de Brennan. Foi escrita no famoso caso de liberdade de imprensa: New York Times v. Sullivan. Um caso que começou em 1960, quando o New York Times publicou um anúncio pago por activistas, denunciando com imprecisões abusos policiais no Sul. Louis Sullivan, chefe da polícia no Alabama, agiu judicialmente contra o jornal por difamação.
Em 1964, o Supremo deu razão ao Times. Numa decisão que faz parte do decálogo da liberdade de imprensa na América, Brennan escreveu este conhecido parágrafo: “O debate sobre questões públicas deve ser desinibido, robusto e aberto e isso pode incluir ataques veementes, cáusticos e às vezes desagradavelmente duros contra titulares de cargos públicos.”
Muita coisa em Portugal nos faz recusar este princípio do “debate desinibido, robusto e aberto”. A nossa tradição ancestral do respeitinho, a qualificação como ofensa pessoal de qualquer crítica incómoda aos políticos, o esmero dos serventuários do poder em punir vozes cáusticas ou dissidentes, o poder abusivo e retaliatório dos “donos do Estado”, nada disso favorece a forma como entendemos a liberdade de expressão.
Parece-me por isso exemplar o caso relatado pelo PÚBLICO no domingo passado em que o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu não levar a julgamento o jornalista do Açoreano Oriental, Estêvão Gago da Câmara, processado por difamação pelo deputado socialista Ricardo Rodrigues. Gago da Câmara referira-se ao envolvimento do deputado do PS com um gang internacional como advogado, sócio e procurador duma sociedade off-shore. O tom era virulento, mas assentava em factos públicos ou demonstráveis.
Eis o eco de Brennan. Disse o Tribunal de Ponta Delgada que “a imprensa quer-se robusta, desinibida e desassombrada”. E o Tribunal da Relação, mesmo reconhecendo que gang era “insultuoso” ou “indelicado”, confirmou que a peça estava “justificada em factos”.
Infelizmente, são avanços como este que podem estar em perigo se ouvirmos em demasia o reeleito presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha Nascimento. No seu discurso de tomada de posse este juiz-conselheiro defendeu a criação de um órgão especial para julgar jornalistas “composto paritariamente por representantes das próprias classes profissionais e da estrutura política do Estado”.
Já não bastava que os políticos fizessem as leis que regulam a profissão de jornalista; que definissem os membros e poderes da entidade reguladora; que contratem agências de comunicação para plantar notícias; que manipulem a publicidade do Estado; ou que pressionem magistrados no contexto de processos que os envolvam directamente e indirectamente. Numa formulação própria duma ditadura, Noronha Nascimento também quer representantes da “estrutura política do Estado” (?) com poderes disciplinares sobre os jornalistas. Ceausescu não diria melhor. Jurista
http://www.jornal.publico.clix.pt/noticia/22-12-2009/uma-imprensa-robusta-e-desinibida-18460969.htm
Daqui.
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