domingo, 12 de maio de 2019

Amarante, Pelo Direito à Memória


Amarante, Pelo Direito à Memória

A partir do minuto 18, durante a festa do 6.º aniversário da construção do Hospital de Amarante, a Dr.ª Filipa Carneiro, Directora Clínica do CHTS, lê um excerto do texto Amarante, Pelo Direito à Memória, na presença do senhor presidente da Câmara, José Luís Gaspar.
É um texto forte. Sentido. Entendível por quem é Amarantino e também por quem não o é.
Hoje, recupero esse texto na totalidade, da autoria de Fernando Matos Rodrigues e de mim própria, relembrando a todos os meus leitores que o assunto que o motivou, o hipotético desmantelamento do muro de suporte da Alameda Teixeira de Pascoaes e amputação dessa mesma alameda, não está esquecido e será alvo de novo debate, no próximo dia 8 de Junho, desta vez muito específico sobre esta concreta agressão à identidade amarantina que está em gestação, motivada por um específico pedido do presidente da Câmara de Amarante a Eduardo de Souto Moura.
Darei novas.
Resta-me agradecer à Dr.ª Filipa Carneiro, Directora Clinica do CHTS, por ampliar as nossas palavras.

Amarante, pelo direito à memória!..

“Amarante corporiza-se-me, ganha forma e conteúdo. Multimoda, carregada de anos e feições, com artérias novas, pulsa ao ritmo da lenda, da história, dos costumes, das paisagens e dos homens”                                                                                                   
 in António Cardoso, 1979:12


Fernando Matos Rodrigues
(Antropólogo. Investigador no CICS.Nova_UM/ Director do Lahb)
Anabela Magalhães
(Licenciada História FLUP, Professora de História)

A zona da Alameda de Pascoaes, com a ponte antiga de Amarante, o largo do mosteiro, o lugar do mercado e a sua envolvente ao Tâmega, com os seus altos, fortes e robustos muros de um velho granito em redor do seu antigo mosteiro, são o traço pictórico que dão a esta antiga cidade um sentido artístico e cenográfico de profunda e rara beleza. Um lugar de memórias, de marcas fundas e sentidas, de momentos colectivos fundacionais, de heroísmos pátrios, de geografias físicas onde se inscrevem as marcas daqueles que construíram esta paisagem.
Cada um dos seus habitantes, naturais daqui ou dali, com as suas origens nesta terra ou noutra qualquer, vivendo aqui ou noutro lugar, com descendência amarantina ou não, encontram neste “topos” urbano um sentido de identidade comum, que lhes asseguram reconhecer-se nele e desta forma ser reconhecido por todos. O lugar fundado e construído abandona a fantasia da criação e transforma-se em território que liga, que protege, que dá sentido temporal e histórico a toda uma comunidade que nele procura a sua matriz identitária de referência cultural e simbólica. Estamos a falar de um lugar histórico, com dimensão espacial e temporal de longa duração, conjugando identidade e relação. Um lugar onde a magia e a história se cruzam e se ligam pelos braços de uma ponte sobre um rio, o Tâmega.
São os lugares de memória, no dizer de Pierre Nora, que se caracterizam por uma grande estabilidade sócio-espacial e paisagística, garante fundacional da memória colectiva, a imagem do que já fomos e daquilo que queremos ser. Estamos na presença de lugares que nos ensinam a apreender a nossa diferença, a nossa individualidade, que projectam a imagem do que somos desde os tempos da infância ao tempo do individuo que muda. A Cidade Histórica é consequência deste amplo e complexo processo, configurando os seus valores arquitectónicos e tipológicos numa rica diversidade de carácter cultural, económico, social e ambiental. Desta diversidade de carácter nasce um compromisso ético com as gerações futuras, porque entendemos o património como um recurso fundamental para a qualidade de vida.
O projecto de Eduardo Souto Moura para o centro da cidade de Amarante coloca-nos algumas dúvidas e levanta muitas contradições perante a possibilidade de uma radical transformação da paisagem e do ambiente urbano numa das zonas históricas do casco antigo da cidade de Amarante.
A primeira dúvida relaciona-se com a natureza e a função deste tipo de projectos e a sua validação na “renovação das cidades antigas”. Esta proposta insere-se na figura de modelo de “renovação/regeneração” de zonas degradadas e sem infra-estruturação pública. Zonas que se encontram degradadas do ponto de vista arquitectónico e urbanístico, desvalorizadas social e economicamente. O sítio da proposta de intervenção (Alameda de Pascoaes) não obedece a esta classificação, nem se encontra des-infraestruturado, nem abandonado. Aliás, é um dos lugares da cidade com mais consolidação urbana e arquitectónica, com mais vitalidade social e económica, portador de arquitectura classificada como histórica e monumental. Uma das zonas mais consolidadas e com mais estabilidade histórica e morfológica da cidade antiga. Onde se localiza o mercado da autoria do arquitecto Januário Godinho (1910-1990) classificado como monumento nacional.
O sítio da proposta de intervenção (Alameda de Pascoaes) não obedece a esta classificação, nem se encontra des-infraestruturado, nem abandonado. Aliás, é um dos lugares da cidade com mais consolidação urbana e arquitectónica, com mais vitalidade social e económica, portador de arquitectura classificada como histórica e monumental. Uma das zonas mais consolidadas e com mais estabilidade histórica e morfológica da cidade antiga. Onde se localiza o mercado da autoria do arquitecto Januário Godinho (1910-1990) classificado como monumento nacional.
Deste modo qualquer “renovação/regeneração” urbana nunca pode fazer deste belo e monumental sítio da cidade uma tábua rasa, como se o arquitecto fosse uma espécie de mão de deus a intervir num sítio aex novo. Lembramos a Carta Europeia do Património de 1975 na qual se estabeleceu como principio a conservação integrada da cidade, o que marca uma mudança na forma como se devem entender os processos de planeamento tendo em conta a conservação do património urbano. Estamos num dos locais mais espectaculares da cidade de Amarante, porque aqui se conjugam a paisagem, o rio, a arquitectura antiga e moderna, canónica e vernacular, o tempo e o espaço, a vontade e o coração dos amarantinos, que durante séculos, fabricaram este palimpsesto de grande complexidade e beleza cenográfica.
Nesta proposta de intervenção o arquitecto Souto de Moura não valoriza o sítio como património, nem dá sentido de monumento ao território da identidade e da diferença que aí foi construído, o muro. A intervenção vem simplificar, vem destruir património, vem limpar memórias, higienizar o espaço urbano para o devolver ao mosteiro na sua dimensão de ícone arquitectónico, o que não deixa de ser paradoxal e anacrónico. A destruição do muro, da sua monumentalidade, termina com a relação complexa que existe entre o alto e o baixo, a Alameda e o rio, a verticalidade e a dramaticidade, a cena e o número. O lugar perde a sua dramaticidade construtiva e domesticado e servil desce para o rio sem glória e sem chama.
Este projecto cria um novo espaço, uma nova identidade, uma nova morfologia, uma nova imagem de espaço urbano, uma nova relação com as cotas altas e baixas, uma relação mais geométrica e linear com o rio e com a outra cidade. Perdemos complexidade e poética, perdemos monumentalidade e drama, ganhamos uniformidade e funcionalidade, perspectiva e linearidade espacial. Com esta proposta o arquitecto uniformiza, banaliza e torna o lugar num não-lugar. Um não-lugar arquitectónico, porque repete a imagem e a cenografia de outros tantos lugares de matriz e concepção moderna, bem ao gosto da tradição do open space.
A destruição do lugar em benefício de outras cotas, de outros patamares, de outras ideologias de plano urbano, não contribuem para acrescentar mais-valias arquitectónicas à zona antiga de Amarante, a não ser a marca internacional Souto de Moura. O centro histórico de Amarante é muito mais que a simples marca de um arquitecto, por muito qualificado que ele o seja. Estamos perante uma proposta que destrói património, arrasa as marcas antropológicas e paisagísticas do lugar, desfigura a cenografia monumental da cidade baixa, introduz uma espécie de neurose contemporânea, que só conduz a uma prática política de perda, de simplificação e repetição de não-lugares. Construir de novo não significa nem pode implicar a eliminação das cidades antigas. Se assim for, estaremos a construir cidades vazias, sem referência e sem identidade, sem genealogia ambiental e sem uma arqueologia do habitat.
Mas o que está em causa não é só e exclusivamente a proposta do arquitecto, mas a decisão política que em nome de uma legitimidade legitimada, um presidente de câmara decide de forma exclusiva transformar e alterar de forma radical a imagem e a arquitectura de um lugar urbano classificado como património. Uma decisão unipessoal, porque não soube escutar todos aqueles que de uma forma ou de outra, estabelecem uma relação de uso e de apropriação com este sítio. O problema é essencialmente político, porque nasce de uma decisão política arbitrária que não soube ouvir e envolver a comunidade amarantina na discussão antes de passar para a decisão. O projecto aparece como facto consumado. A discussão pública aparece depois do projecto consumado, o que nos leva a concluir que é inapropriada e de mera cosmética.  

Ver aqui.
In Jornal Sol

(Ver a partir do minuto 5)

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