segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Mouftha


Moufta e Companhia - Akakus - Líbia
Fotografia de Artur Matias de Matias

Moufta

A minha postagem de hoje é sobre um personagem inesquecível que conheci aquando da minha visita à Líbia, na Páscoa de 2004.
O Moufta foi o motorista do Jeep Toyota que nos calhou na rifa, em Sebha, a cidade em pleno deserto de onde partimos para nos embrenhar no Grande Sahara durante cinco longos dias.
Apercebemo-nos desde logo que o Moufta não falava outra língua que não a dele, ou seja, o árabe, e que de inglês conhecia o "yes"e o "no" e que, quando havia problemas, de atascanço, por exemplo, abria os braços e dizia "caput". E quanto a nós não falávamos árabe, a não ser uma meia dúzia de míseras palavras como obrigada, de nada, bom dia, mais ou menos, oxalá e pouco mais. Cinco dias de intimidade com uma pessoa com quem era quase impossível a comunicação seriam talvez um pouco maçadores e monótonos... mas não foram. Não sei que chispa disparou ou acendeu entre nós que nos conectou a todos numa comunhão difícil de explicar. No fim do primeiro dia de viagem, por aquele deserto imaculado e sem fim, já comunicávamos com um simples olhar, um sorriso cúmplice, um empiscar de olhos, um abanar de cabeça, um gesto, uma meiguice. E não falo só por mim. Não posso falar só por mim. Falo pelo Artur, pela Joana, pela minha sobrinha Mel. Uma comunhão estranhíssima entre perfeitos desconhecidos, nós e ele, gente de diferentes culturas, que é raro acontecer, e que, quando acontece, deve ser saboreada como merece ser saboreada qualquer coisa difícil e rara. E assim fizemos. Saboreámos a grandeza e a imensidão do Moufta durante cinco longos dias de partilha intensa. E ele partilhou connosco o seu magnífico Toyota, que conduzia pelo deserto adiante de forma estranha - rodava o volante com o dedo indicador direito, travava com o dedo grande do pé esquerdo, acelerava com o direito e deixou-nos a pensar que ele e a sua máquina eram uma só entidade. E não me esqueço que colocou a minha filha ao volante daquela bizarma e ela, franzina, acusando a responsabilidade, dominou a máquina como uma leoa, conduzindo-nos deserto adentro em absoluta segurança seguindo as ordens gestuais do Moufta. E partilhou connosco a sua bondade, simpatia, sensibilidade, generosidade. E atirou-nos contra autênticas paredes de areia, difíceis de descrever, pondo-nos a trepar e a cavalgar estas dunas gigantescas que só existem neste mar de areia, rindo e gargalhando de contentamento.
Os cinco dias de deserto, longos, passaram que voaram. Soubemos pelo Sahel que o Moufta era pai recente dum rapazito de poucos meses. Soubemos pelo Sahel que a alcunha do Moufta era "Chorão", por ser um indivíduo muito sensível e emotivo. Mas afinal isto já nós sabíamos, isto já nós tínhamos descoberto nos dias e noites passados na areia quente e multicolor do deserto.
Felizmente, a despedida, à porta do aeroporto de Sebha, foi feita a correr, no meio dum enorme stresse. E digo felizmente porque não nos deixou tempo para nada, nem mesmo para abrirmos as barragens em que estavam transformados os nossos olhos prestes a largar todas as lágrimas acumuladas, já de saudades, dum indíviduo que foi um gosto conhecer e que nos enriqueceu a todos com a sua simplicidade.
Continuo a perguntar ao Sahel pelo Moufta e pela sua família. Continua em Sebha e sei que está bem. E continuo a mandar-lhe cumprimentos, e a desejar-lhe tudo de bom, por uma razão muito simples - ele merece.
Independentemente de ser muçulmano, árabe, tuaregue, escuro, claro, ou seja lá o que for.

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