S. Gonçalo - Amarante - Esquisso de Rui Gonçalves
A palavra a José Emanuel Queirós
SOBRE OS TEMPOS DE DESENCONTRADAS HUMANIDADES
Estamos ainda no início de um conturbado período de propagação crescente de uma nova pandemia que corre o mundo de lés-a-lés sem restrições de fronteiras ou limitações continentais.
Oriunda da cidade chinesa de Wuhan onde corre o rio Yangtzé, nos distantes territórios asiáticos da província de Hubei, na China central, a insignificância do vírus na escala biológica ganhou o temor da Humanidade pelo abuso usurpador da fisiologia humana, ocupando e destruindo os sistemas vitais de pacientes indefesos, galgando sem permissão todas as distâncias do mundo na circulação do hospedeiro, gerando o pânico, a doença e abreviando a existência de pessoas mais susceptíveis.
Na China comuno-capitalista do imperador vermelho Xi Jinping, onde a lealdade do dragão ao seu povo soçobrou na ortodoxia do partido, a propagação da doença na capital provincial foi conhecida em Pequim com antecedência de mês e meio em relação ao resto do mundo, e o investigador que a descobriu foi levado de quarentena com todos os cuidados de segurança que os regimes autoritários tratam as inconveniências até ser conhecida a infecção da sua morte pelo vírus.
No mundo civilizado, Itália é o país onde as famílias mais estão a ser fustigadas pela doença que a globalização trouxe à Europa da moda e do luxo, numa demoníaca democratização da doença propagada entre ricos e pobres sem distinção da griffe e da idade. Chocam os menos sensíveis, os apelos médicos esvaídos em dor e sem meios para obstar ao padecimento de enfermos urgentes acumulados no corredor da morte de hospitais apanhados desprevenidos.
Os tempos desta clausura forçada trouxeram restrições aos nossos movimentos sociais, abriram espaço a solidariedades imprevistas e renovaram encontros distanciados improváveis que as rotinas comuns teriam tornado impossíveis, enquanto as estranhas circunstâncias desta Primavera entrada com céu de chumbo inquieta a linearidade do pensamento colado à informação.
Por quanto mais quiséssemos resistir à chegada do novo invasor invisível e ao seu poder fatal sobre-humano, dois meses após a OMS ter advertido para a calamidade pandémica, e a Autoridade Nacional de Saúde Pública ter desvalorizado a competência do insignificante vivente chinês, mais tempo não nos foi concedido para a emergência além do primeiro dia de Março em que se registou no país o primeiro caso comprovado de contaminação pelo designado COVID-19.
O surto endémico circunscrito a uma cidade em pouco tempo galgou o mundo passando a constituir uma ameaça global para o qual não há antídoto experimentado e eficaz, trazendo à Europa o comprovativo de débeis sistemas de saúde, tecnicamente capazes de enfrentar o inimigo mas estruturalmente passíveis de colapsarem com a sua invisível difusão generalizada.
Colocados entre o compromisso dos défices orçamentais e o atendimento oportuno e célere à emergência, titubearam os eleitos pelos povos europeus, permitindo o alastramento da infecção nos seus territórios, esperando que seus concidadãos fossem poupados aos contágios e soubessem evitar males maiores.
Medidas públicas de combate social à doença surgiram em Portugal a conta-gotas, sem estratégia e em câmara-lenta, leve-levemente, procurando ir atrás do prejuízo, com transportes à pinha como sardinha em lata, praias cheias com verão antecipado, continuando a circular transportes terrestres, marítimos e aéreos, com profissionais de saúde competentes expostos ao combate por falta de protecção individual, colocando a saúde e a vida em risco.
Com serviços de Saúde Publica ocupados por doentes e sinistrados a suplementação necessária só por artes de voluntariado poderia tornar-se possível dar resposta ao nível das exigências, desguarnecidos de espaço, equipamentos e efectivos. A pandemia começou por não ser levada muito a sério e quando se instalou, apanhando todos desprevenidos e sem medidas protectoras musculadas, tende a tornar-se em pandemónio por onde passa com seu manto de fumo negro.
Na falta da prevenção que precede uma cultura de segurança as debilidades e as faltas de cada um reflectem-se na ineficácia da acção de todos, ao qual não é alheio o Estado no seu papel interventivo, directivo e orientador.
Estamos no início de uma grave crise de dupla face, na saúde pública e na economia, com necessidade a evitar rotinas e encontros públicos, a urgência de assegurar a protecção e o resguardo, sem colocar em risco o funcionamento de sectores estratégicos da sociedade onde todos fazem falta e em que todos são necessários. Nesta hora de receios comuns, a cooperação suplanta por margens larguíssimas tudo o que em educação fomos industriados quanto ao princípio da competição e excelência dos homens, quando o que mais se vê são contributos espontâneos e anónimos de gente comum a fazer a diferença nas horas de excepção.
Esta Primavera promete ser anormal e começou marcando de modo inesperado todo o mundo consciente do enfadonho inimigo invisível, mudando hábitos, restringindo movimentos, domesticando padrões comportamentais, pelo risco aportado nas proximidades e nos contactos. Vai obrigar a inflecção de prioridades e modos de governar, com a probabilidade de acordar os povos para o seu papel estruturante e estrutural na organização dos Estados, e a tendencial readequação dos sistemas humanos sobrepostos ao geossistema global. Trará vítimas inocentes em trânsito pelo mundo, e, por certo, fará das provas de uns as maiores lições dos que ficarem e que jamais esqueçam que todos andamos à procura de nossas desencontradas humanidades sem clara noção desse desígnio universal.
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