quarta-feira, 12 de março de 2008


Barca - Carvalho de Rei - Serra da Aboboreira - Amarante
Fotografia de Artur Matias de Magalhães

Ricardo Cerqueira

Viagem através da vida, da mente e do monte

III - Capítulo

Eu conhecia relativamente bem o caminho até ao posto de guarda e sabia que deveria demorar cerca de um dia para lá chegar. Mesmo assim, coloquei comida para três dias na minha mochila.
Caminhava tranquilamente, embora fosse difícil não pensar como estaria o meu pai. Fiz o meu melhor para não pensar nisso. Até tive sorte, o frio e o vento tinham cessado e o tempo estava agradável. Enquanto caminhava ia pensando e imaginando coisas para me distrair, por exemplo, reconhecia todos os tipos de árvores, embora estivessem cobertas com uma camada de neve cintilante, atribuía nomes às pedras que encontrava no chão, imaginava formas divertidas nas nuvens e continuava sempre determinada.
Já passavam das quatro horas da tarde quando saí de casa, portanto não tardou a anoitecer e, embora tivesse lanterna, não me atrevi a caminhar durante a noite, por muito mais tempo, porque à noite, a cabeça prega-nos partidas um pouco assustadoras.
Encontrei um grande tronco oco junto ao caminho e decidi passar lá a noite. Fui obrigada a fazer uma fogueira, pois o frio não dá tréguas e também não se poupa a esforços para nos fazer congelar até aos ossos. Jantei, comi um pouco de pão e atum enlatado com arroz que aqueci na fogueira.
Depois de comer, deitei-me dentro do tronco e cobri-me com um casaco impermeável. A fogueira crepitava e adormeci embalada pela dança das chamas.
Não sei quanto tempo dormi, mas não deve ter sido muito, pois quando acordei ainda era noite. Um barulho vindo dos arbustos fez-me acordar e fiquei assustada. Apontei a lanterna naquela direcção e nada vi além do que já lá estava antes. Mesmo assim, encheu-se-me a cabeça de pensamentos lúgubres e nefastos.
Julgando que estava a sonhar acordada, constatei que estava num espaço desconhecido e que a fogueira, o tronco, as árvores e tudo o resto tinha desaparecido e que me encontrava como que perdida no espaço e no tempo.
Deambulava dum lado para outro, mas a escuridão cegava-me e ensurdecia-me. Só não se intrometeu com o sentido do olfacto. Sim, não sei porquê, sentia um cheiro muito intenso a atum.
Então acordei verdadeiramente e dei conta de que estava simplesmente a ter um pesadelo. Mas o cheiro a atum era bem real, eu tinha deixado a lata junto da fogueira e o atum cheirava a queimado.
Foi demasiado tarde que me ocorreu que este cheiro poderia atraír algum tipo de animal esfomeado e desesperado, como os lobos. Peguei na lanterna e apontei para todos os lados. Nada de invulgar, excepto o facto de um dos arbustos ter dois pares de olhos. Apercebi-me, então, de que esses olhos pertenciam a dois lobos lazarentos.
Agi instintivamente e, apenas com a lanterna na mão, corri o mais depressa que podia. Os lobos seguiram-me mas não me alcançaram. Provavelmente estariam demasiado cansados. Estava horrorizada de medo e tropecei, caindo na neve. A queda não foi grave, mas bastou para os lobos me encurralarem. Consegui ler nos seus olhos que se riam de mim e da estupidez de ter deixado o atum perto da fogueira. Foi neste momento de puro terror que me veio à memória a minha mãe e o seu lema. Esta lembrança acalmou-me, mas não chegaria a calma para escapar. Embora me custasse a admitir, nada poderia fazer para fugir. Então entrei numa espécie de transe e perdi a noção do tempo. Os lobos continuavam às voltas, à espera do momento certo para atacar. Talvez a minha calma os fizesse “pensar duas vezes”.
Eu continuava a pensar na minha mãe e nas suas histórias, quando um dos lobos soltou um uivo de desespero e atacou. E numa fracção de segundo, o uivo de impaciência tornou-se num grito de agonia e dor. O lobo caiu por terra e o outro fugiu assustado.
Mas, porque é que o lobo tinha morrido? Aproximei-me dele e constatei que tinha uma seta atravessada na barriga. Mas não era uma seta normal, estava decorada de uma maneira estranha. Poderia ser que as histórias da minha mãe fossem verdadeiras? Tive de crer que sim, pois logo de seguida, um indígena apareceu à minha frente. Em vez de agradecer, a única coisa que fiz foi gesticular e gritar, tentando dizer ao índio o que se passava com o meu pai. Pouco tempo depois, desmaiei pelo cansaço e todas as emoções do dia.

2 comentários:

Vera Matias disse...

Gostei imenso deste texto.
Gostei mesmo muito.

joao disse...

mui7o bom...

gos7ei!!

:DD

 
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