quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Autorretrato de Professora - Uma grande parte de mim


Autorretrato de Professora - Uma grande parte de mim

Como não se consegue ler o recorte, ainda procurarei arranjar este autorretrato em formato papel, partilho o texto que escrevi a pedido do José Carlos Vasconcelos, aproveitando para lhe agradecer a confiança que em mim depositou. O texto, escrito há já algum tempo, saiu hoje, no Jornal de Letras e este recorte, que o comprova, foi-me enviado pelo Paulo Guinote a quem também agradeço duplamente, triplamente, eu sei lá! Ah... e agradeço ainda à Professora Maria do Carmo Cruz que teve a amabilidade de o ler em primeira mão com a missão de lhe encontrar falhas.
Confesso, olho para mim própria tão sorridente na fotografia e não posso deixar de sorrir...

Uma grande parte de mim

Nasci na segunda metade do século XX, no ano de 1961, em dia insólito e paradoxal, pois se, por um lado, a celebração da imensa alegria acompanhou a materialização exterior da minha vida, por outro lado, o facto de nascer em Dia de Fiéis Defuntos remeteu-me desde sempre para a melancólica memória dos outros que partiram deste mundo em circunstâncias muito diversas.
Nasci no centro histórico da vila de Amarante - num tempo em que a esmagadora maioria das mulheres dava à luz em casa, auxiliada por mulheres habilidosas que desempenhavam o papel de parteiras – em casa com portas, janelas e varandas abertas sobre uma paisagem que ainda hoje me acompanha os dias e que ainda hoje é um dos meus nortes – uma paisagem sólida, constituída pelo casario, pelas praças, ruas e vielas amarantinas, uma paisagem líquida, constituída pelas águas ora suaves ora tumultuosas de um rio que corta a urbe em duas metades distintas e que se chama Tâmega e uma paisagem humana ímpar, feita de vultos tão importantes quanto um Amadeo de Souza-Cardoso ou um Teixeira de Pascoaes, só para citar dois dos mais ilustres amarantinos de todos os tempos.
Os primeiros anos de escola cumpri-os em colégio religioso católico, de que guardo muitas memórias mas de que não guardo boas memórias. O ensino estava a cargo de professoras/freiras muito ríspidas, frias e duras que impunham um saber em voga que apelava unicamente à memorização de absurdos tais como as linhas dos caminhos-de-ferro de Portugal Continental e das suas Províncias Ultramarinas e que obtinham o “respeito” de todos os alunos através da violência física e psicológica e do medo que daí resultava.
Cumprida a 4.ª classe, ingressei na Escola Pública, mais concretamente na Escola Preparatória Teixeira de Pascoaes, onde contactei essencialmente com professoras, todas muito diferentes do que até aí conhecia, porque simpáticas, amáveis, algumas brilhantes mesmo e que não exerciam sobre os seus alunos qualquer espécie de violência. É deste tempo o desejo secreto de ser escritora… talvez uma nova Enid Blyton… ou, em alternativa, arqueóloga… profissão que talvez me levasse a destinos exóticos, vasculhando por exóticos artefactos…
Todos nós, ao olharmos retrospetivamente para o nosso percurso escolar, encontramos Professores que se mantêm como referências e faróis nossos pelo tempo que por cá andarmos. Desta fase, recordarei para sempre uma Maria Eulália Macedo, Professora de Moral, uma Maria José Pinto, Professora de Desenho, uma Francisca Sousa, Professora de Francês, uma Isabel Sardoeira, Professora de Matemática e de Ciências…
Prossegui os estudos, o 25 de Abril de 1974 marcou alterações brutais no país, também nas escolas… só para dar um exemplo, não mais tive de frequentar recreios unissexo, tal como até aí nos fora imposto. Entretanto, esqueci por completo os vagos desejos que tinha sentido um dia relativamente à minha vida profissional futura e estes anos ficarão marcados apenas por uma certeza – prosseguiria os estudos na área de Letras.
Só a frequência do ensino secundário haveria de determinar a minha atual condição profissional. Desta fase, recordo Professoras tão diferentes mas todas tão fabulosas quanto uma Filomena Morais, a minha apaixonada Professora de Português, uma Maria Emília Melo, professora de Filosofia e Psicologia, de um rigor e de um profissionalismo a toda a prova… ou uma Ermelinda Montenegro, minha excecional Professora de História… Esta última seria mesmo determinante para o crescimento em mim de uma vontade férrea, e até aí oculta, de ser Professora de História - é que eu queria crescer e ser assim amável e doce, educada e respeitadora, sabedora e firme, culta e partilhadora, criativa e capaz de aliciar os alunos para as descobertas dos enigmas colocados por esta disciplina fundamental para o entendimento da atualidade em que vivemos.
Ingressei na Faculdade de Letras da UP e desse tempo recordo um humaníssimo Frei Geraldo e os competentíssimos Vítor de Oliveira Jorge e Luís Adão da Fonseca que estão entre os muito especiais.
Iniciei a minha atividade docente no ano de 1986, na Educação de Adultos, lecionando em duas escolas primárias distintas, à noite. E pela noite continuei a trabalhar com alunos frequentemente mais velhos do que eu e com experiências de vida riquíssimas mas que, por razões variadas, não tinham obtido o diploma conferido pelo antigo ensino preparatório e que ostentavam apenas o diploma de uma magra e claramente insuficiente 4.ª classe. A opção por este tipo de ensino, noturno e dirigido predominantemente a adultos, que poucos professores à época desejavam, foi minha. Porque, se por um lado aceitava horários anuais de 16 horas, incompletos, o que se refletia muito negativamente no meu tempo de serviço e implicava deslocações em viatura própria, por montes e vales, durante a noite, por outro lado, o facto de concorrer a esses horários, permitia-me dar um acompanhamento de inteira proximidade à miúda que entretanto me nascera e pela qual era responsável, já que era sua mãe.
Note-se que, no inverno, chegava mesmo a ser penoso alcançar escolas de difícil acesso devido às estradas complicadíssimas que era obrigada a percorrer, algumas servidas por estradão de terra batida.
A vida é feita de opções e, confesso, nunca me arrependi desta decisão, apesar das consequências negativas que se fizeram e farão sentir para sempre na minha vida profissional.
Entretanto, eis que chega o ano letivo de 1992/93, ano em que fui colocada, pela primeira vez, em horário misto, completo, na Escola Secundária do Marco de Canavezes. Passados tantos anos, continuava professora contratada, despedida impreterivelmente a cada 31 de Agosto, sem direito a subsídio de desemprego e a perder a ADSE, sem garantias de trabalho no ano seguinte… até voltar a ser contratada… com sorte, lá para finais de setembro.
E continuei nessa condição de professora contratada, impedida, na prática, de criar grandes vínculos às escolas por onde passei sempre de forma fugaz – nunca trabalhei dois anos letivos seguidos num mesmo estabelecimento de ensino – até que, em meados dessa década, vinculei à função pública, em Quadro de Zona Pedagógica – CAE Tâmega. O salto qualitativo fora enorme: tinha agora a estabilidade de um vínculo laboral, saboreado e experimentado pela primeira vez na minha vida profissional, iniciada na década anterior. Mas continuei a não ter uma escola a que pudesse chamar “minha” já que, dentro da zona pedagógica a que estava vinculada, podia ser colocada numa qualquer escola de uma qualquer terra, um ano aqui, outro acolá.
Esperei até ao ano letivo de 2009/2010 pelo tão desejado vínculo a uma escola ou a um agrupamento, enfim… tinha quase 50 anos de idade e, finalmente!, pela primeira vez na minha vida, conhecia a segurança e o prazer de saber onde estaria colocada no ano seguinte. Finalmente, e pela primeira vez na minha vida, conhecia o alívio de não ter de concorrer a concursos anuais, autênticas roletas russas na vida de quem abraça esta tão complexa profissão. E olhei para trás, fui recuando no tempo e achei verdadeiramente incrível a forma displicente, arrogante e desrespeitadora que é apanágio e característica ainda marcante de quem nos tutela e nos trata, literalmente, como carne para canhão, como coisas descartáveis, sem acautelar minimamente a nossa estabilidade emocional, económica… enfim, coisa só possível de tolerar por quem ama profundamente esta profissão de desgaste rápido mas não reconhecido.
Hoje, tal como ontem, sei que quem me segura a esta profissão, que eu livremente escolhi, são os Meus Alunos, pessoas especialíssimas que me chegam à sala de aula sendo miúdos e que saem dela uns homenzinhos e umas mulherzinhas. Poder acompanhar e amparar este crescimento continua a ser, para mim, um enorme desafio e um enorme privilégio.
Há duas circunstâncias, para além de todas as outras, que determinaram a pessoa que eu sou hoje – sou Amarantina e sou Professora. E nunca me esqueço de que, se exerço a profissão que amo, o devo aos meus conterrâneos mais novos que são o futuro da minha rua, da minha cidade, do meu país, do meu Mundo. Esta é a minha responsabilidade maior. E eles são a Inês, o Diogo, a Diana, o Pedro, a Laryssa, o Tomás, o António, a Maria, o João, a Rossio, o Francisco, o Hélder, a Joana, a Margarida, o Vasco, a Rosa, o Miguel, a Luana, a Marisa, a Ana, a Bárbara, o Luís, o José, o Manuel, o Rui, a Sofia, o Luciano, o Ricardo… e tantos outros que eu ficaria horas a relembrar… miúdos e miúdas todos diferentes, todos iguais, ora difíceis, ora fáceis, ora doces, ora rebeldes… que enchem a minha vida de alegria, de cor e de carinho e que me fazem não desistir desta profissão que abracei um dia de alma e de coração… apesar dos sucessivos disparates da tutela que nos desgastam até à exaustão.

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