domingo, 10 de abril de 2016

"A Irresponsabilidade Familiar das Empresas"


"A Irresponsabilidade Familiar das Empresas"

Hoje partilho um artigo retirado na íntegra do Observador, da autoria de Pedro Afonso, médico psiquiatra, que lança um alerta sobre a irresponsabilidade familiar das empresas. Estendo o alerta para os serviços públicos portugueses, a começar pelo Ministério da Educação e suas hierarquias.

A irresponsabilidade familiar das empresas

"Trabalhamos cada vez mais horas, passámos a levar trabalho para casa e um dos problemas é considerarmos que é "normal" trabalhar diariamente 10-12 horas, ideia com raízes em várias áreas de atividade.

Perante as acusações de capitalismo predatório e desumanizado, alimentado pela obsessão do lucro, muitas empresas responderam com algumas medidas, adotando voluntariamente comportamentos e ações destinadas a promover o bem-estar da coletividade. Estas medidas são conhecidas como “políticas de responsabilidade social”. Todos recordamos alguns exemplos de campanhas de solidariedade e de angariação de verbas para instituições de solidariedade social, promovidas por empresas, principalmente em períodos como o Natal.
Mas existem outros problemas muito mais graves (porque nos afetam a todos) que surgem atualmente em muitas empresas, e que estão a transformar-se num verdadeiro desastre social. Refiro-me ao excesso de carga horária semanal e à invasão predatória da vida profissional na vida pessoal. Trabalhamos cada vez mais horas, e passou a ser um hábito levarmos trabalho para casa. Por outro lado, os meios de comunicação proporcionados pelas novas tecnologias, como o e-mail, o telemóvel, as mensagens escritas, etc., contribuem para que a vida profissional subjugue a nossa vida pessoal e familiar.
A falta de pudor e sentido ético tomou conta de muitas empresas, e já não se hesita marcar uma reunião para as 19 horas. Tornou-se um hábito telefonar, enviar e-mails ou mensagens escritas fora do horário de trabalho. Além disso, é cada vez mais frequente que o jantar familiar seja interrompido por um contato profissional. O serão, após o dia de trabalho, é muitas vezes utilizado para responder aos e-mails que ficaram pendentes durante o dia. As férias são frequentemente invadidas com contatos profissionais, porque se criou a ideia de que se tem de estar sempre contatável e disponível. Este servilismo profissional, transformou-se numa nova escravatura, que afeta todos os níveis de responsabilidade dentro das empresas.
A pressão é enorme e aquele que procura resistir, colocando barreiras a esta autêntica invasão da sua vida pessoal e familiar, é criticado pelos colegas e pelas chefias. Existe uma coação moral para que todos estejam sempre disponíveis para a empresa.
Atualmente, um dos grandes problemas é considerar que é “normal” trabalhar diariamente 10-12 horas. Esta ideia tem criado raízes em várias áreas de atividade profissional. Uma jovem mãe advogada que acompanhei, contrariando a regra do tempo de permanência no local de trabalho, procurava sair o mais tardar até às 19 horas do escritório para passar algum tempo com o filho mais pequeno, cuja hora de deitar era habitualmente pelas 21h30 horas. A jovem advogada era dedicada e competente, mas ousou quebrar com o status quo do horário das 12 horas diárias do grande escritório de advocacia onde trabalhava. Um dia foi chamada ao gabinete de um dos sócios. Foi-lhe dito que as saídas do trabalho àquela hora haviam sido notadas e estavam a gerar algum incómodo junto dos outros colegas. Ela replicou, alegando que tinha a mesma produtividade do que eles e que desejava, para além de trabalhar, de ver o seu filho crescer e desfrutar da sua presença. Reconhecendo a competência da sua jovem colaboradora, o sócio respondeu: “Tem razão, mas, para acabar com os falatórios, envie de vez em quando um e-mail aqui para o escritório, por volta das 10-11 horas; assim pelo menos dá a ideia de que continua a trabalhar a partir de casa”.
A conciliação entre o trabalho e a família é uma das tarefas mais difíceis de alcançar para qualquer casal com filhos. A pressão da sociedade está cada vez mais do lado do trabalho, pois a nossa cultura valoriza muito mais o sucesso profissional do que o investimento feito na família. Embora sejam realidades diferentes o trabalho e a família não são incompatíveis; pelo contrário, são complementares. Uma boa satisfação no trabalho enriquece a vida familiar e vice-versa.
É tempo de pedir às empresas que contribuam para o bem-estar coletivo, contrariando este ambiente de pressão que conduz a um autêntico sequestro profissional. É tempo de todos começarmos a exigir que as empresas adotem normas éticas de responsabilidade familiar."

Pedro Afonso, Médico Psiquiatra


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